segunda-feira, 21 de abril de 2025

Os Que Se Desfizeram - Capítulo 8 — O Corte

    Choveu a noite inteira. Mas a chuva não caía do céu. Ela subia do chão — neblina espessa feita de lembrança e medo evaporado. 
 
    Elias vagava. Ou era levado? Os pés moviam-se sem ordem. As mãos, fechadas em punhos — dentro de um, a agulha de osso. No outro, o fragmento de Vidro. 
 
    Ele estava só. Mas as presenças passadas o seguiam como sombras: o sussurro da Costureira, o riso de Nula, a voz quebrada do Pregador, o olhar do Vidro, a promessa da árvore, o aviso do apodrecido. 
 
    Tudo pulsava dentro dele. Como se a floresta tivesse brotado em suas vísceras. 
 
    Então, ele chegou. Não a um lugar. Mas a um espaço interno que não suportava mais contenção. 
 
    Ali, caiu de joelhos. 
 
    Ali, quebrou o silêncio. 
 
    Primeiro, gritou. Não palavras — um som que rasgava a garganta e abria portais. 
 
    Depois, chorou. Mas as lágrimas não caíram: elas evaporaram assim que tocaram o ar. O que chorou, alimentou algo invisível. 
 
    Então… tirou do bolso o fragmento de Vidro. 
 
    Olhou para ele. Beleza insuportável. 
 
    Lembrou do que Vidro dissera: “Quando chegar a hora, coloca isso na boca. E morde.” 
 
    Elias levou o cristal até os lábios. Hesitou. 
 
    Lembrou de quem fora. Da infância em que cabia mal. Dos empregos que odiava. Das festas onde sorria por obrigação. Dos espelhos onde procurava sinal de si, e não achava. 
 
    Mordeu. 
 
    O corte foi imediato. A boca encheu-se de sangue e luz. Os dentes quebraram. A língua cantou. O mundo silenciou. 
 
    E então… a pele se abriu em rachaduras, não de dor, mas de revelação. O manto da Costureira se fundiu à carne. A agulha de osso, em sua mão, brilhou e desapareceu dentro do braço. Ramos finos brotaram sob a pele, mas não eram de planta — eram raízes de linguagem esquecida. 
 
    Elias caiu para trás, os olhos sem foco. 
 
    Por horas — ou dias — ficou ali, sendo. 
 
    Nem homem. Nem bicho. Nem espírito. Apenas um nó novo na floresta. 
 
    Quando abriu os olhos, viu o mundo com outra textura. As árvores falavam. O vento carregava histórias. E sua respiração… era feita de outra substância. 
 
    Ele não sabia mais seu nome. E por isso, finalmente estava livre. 
 
(Continua...) 
 
Conto: Odair José, Poeta Cacerense

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