quinta-feira, 9 de dezembro de 2021

O Dragão devorador de alface

 

    O pequeno garoto tinha o olhar fixo nos dois senhores sentados no banco da praça e os ouvidos atentos ao que eles diziam.

    - No Ocidente – disse um deles – o dragão, revestido de escamas, de cauda eriçada e vomitando fogo, representa o mal.

    - Ouvi dizer – disse o outro – que na filosofia do Extremo Oriente os dragões eram animais benévolos, simbolizando também a chuva, a neblina e o vento.

    - Na Coréia, cada rio e regato tinham o seu dragão próprio – fez uma pausa e continuou – na China Setentrional e Central, os dragões eram deuses da chuva que irrigavam os campos de arroz e formavam as nuvens com o seu bafo.

    Eram dois senhores bem distintos entre si. Um era alto e magro, negro de cabelos encaracolados já brancos pelo tempo; o outro era branco, baixinho e gordinho de olhar esbugalhado. O garotinho sentara-se bem próximo deles porque adorava histórias de dragões. O senhor negro disse:

    - Desde tempos muito antigos que inundações, vendavais e trovoadas eram atribuídos a dragões que combatiam na atmosfera ou nos rios. Os belos seixos encontrados junto aos regatos das montanhas eram considerados ovos de dragão, que, eclodindo por ocasião das trovoadas, deixavam voar em liberdade os dragões recém-nascidos.

    - Boa a sua história – disse o senhorzinho baixinho com um leve sorriso no rosto – mas a minha é ainda melhor.

    - Então diga.

    - Os dragões provocavam redemoinhos em terra e trombas  de água no mar. – Disse o velhinho sob o olhar atento do garotinho – Quando deixavam os seus covis situados em terra e se erguiam no ar, a pressão que as suas patas exerciam sobre as nuvens originava a formação de chuva.

    - Nossa! – Exclamou o senhor negro.

    Ambos fizeram uma pausa e olharam para os transeuntes que caminhavam pela praça naquele final de tarde. Olharam para o garoto perto deles e pareciam ignorar toda a curiosidade em seus olhos.

    - Os dragões chineses – Disse o senhor negro – eram de cores diversas: pretos, os dragões destruidores e o dragão trovejante da casa imperial; amarelos, os da sorte, e azul-celestes os que anunciavam o nascimento dos homens importantes.

    - Sério?

    - Sim. Já ouviu falar em Confúcio?

    - Sim.

    - Pois é. Na noite em que ele nasceu, dois dragões azul-celestes apareceram na casa de sua mãe.

    - Essa foi boa – Disse o velhinho baixinho e o garotinho pareceu concordar apesar de nem fazer noção de quem era esse tal de Confúcio.

    - Sua vez – Disse o senhor negro para o seu parceiro de histórias.

    - Os dragões podiam também alterar as suas formas e ainda brilhar na escuridão, tornar-se invisíveis, reduzir-se às dimensões de lagartos ou aumentar até ocultar céus e terra. Repousavam no fundo do mar em palácios de pérolas e falavam em voz agradável como o tilintar de pingentes de cobre.

    O garotinho estava cada vez mais impressionado com o conhecimento desses dois velhinhos sobre os dragões. Será que ainda teriam histórias mais impressionantes sobre eles?

    - Os ovos de dragão – disse o senhor negro – um medicamento popular da medicina tradicional chinesa, eram quase certamente fósseis de animais pré-históricos, que os farmacêuticos, na sua maior parte, armazenavam na terra ou reduziam a pó.

    Houve mais uma breve pausa. O sol já se escondia no horizonte e a noite em breve tomaria conta do firmamento.

    - Vou contar uma boa agora – Disse o senhor negro – Prepare-se para ouvir. Será insuperável.

    - Manda ver – Disse o senhor baixinho.

    - A lenda do homem que mata o dragão aparece sob a forma de versões variadas, todas sangrentas. Matar um dragão era a proeza que coroava a carreira de quase todos os antigos heróis, entre eles, Siegfried, Sigurd, Beowulf, São Jorge, São Miguel, Artur, Tristão e até mesmo Lancelot. As versões, numerosas, variavam. O ferreiro John Smith, de Deerhurst, no Gloucestershire, deu leite a beber a um mostro guloso. Depois de ingerir o líquido, o dragão deitou-se ao sol, com as escamas eriçadas, e o corpulento ferreiro, aproveitando a oportunidade, cortou-lhe a cabeça.

    - Nossa! – Exclamou o senhor baixinho – Agora você se superou.

    O garotinho concordou com a cabeça. Em sua mente era impossível ter mais coisas sobre os dragões.

    - Sua vez – Disse o senhor negro para o baixinho.

    - Está bem – Disse ele com um sorriso no rosto – Em Lyminster, no Sussex, um homem matou um dragão oferecendo-lhe um pudim envenenado tão grande que teve de ser transportado numa carroça. O dragão engoliu tudo, pudim, carroça e cavalos.

    - Uau! – Exclamou o senhor negro.

    - Mas essa não é a melhor parte – Disse o senhor baixinho.

    - Não?

    - A melhor parte vem agora – Disse o baixinho com um leve sorriso nos olhos e prosseguiu sob o olhar do garotinho – Na maior parte das lendas, os dragões alimentavam-se de donzelas, mas um escritor do começo do século XVIII, Topsell, na sua História de Quadrúpedes, atribui-lhes uma alimentação mais saudável. Eis o que ele diz: “Eles mantêm-se saudáveis (como Aristóteles afirma) comendo alface brava, que os faz vomitar quando ingerem qualquer alimento nocivo. São-lhes especialmente prejudiciais as maçãs, pois os seus organismos são atreitos a encherem-se de vento, razão porque nunca comem maçãs, mas sempre alface brava”.

    Havia uma expressão de admiração no olhar do senhor negro e do garotinho. Realmente essa ideia de que a alface é o melhor alimento para os dragões ninguém esperava.

    - Tem mais alguma coisa? – Indagou o senhor negro – Porque quero terminar a minha explicação.

    - Só mais uma – Disse o senhor baixinho e destacou: - Embora na sua maioria estes seres fossem temíveis, havia dragões amáveis. O autor romano Plínio menciona um homem chamado Thoas de Arcadia salvo do ataque de um ladrão pelo seu fiel dragão.

    - Massa! – Limitou-se a dizer o senhor negro.

    - Conte a sua parte final – Disse o senhor baixinho.

    - Pois bem – Disse o senhor negro – As lendas eram tão comuns a tantas terras que é possível interrogarmos-nos sobre a sua origem. As interpretações dos artistas assemelham-se extraordinariamente à reconstituição científica dos dinossauros. A suposição é notável. Os dinossauros desapareceram da Terra há 70 milhões de anos, e os antepassados diretos do homem surgiram apenas há 2,5 milhões de anos. Consequentemente, as lendas dos dragões não podem ser uma recordação popular do tempo dos dinossauros. A origem mais provável da lenda é que o homem primitivo, ao encontrar os ossos fossilizados de dinossauros, tenha concluído que aqueles pertenciam a algum animal gigantesco, aterrorizador, com a forma de lagarto. O que há de notável nesta interpretação é como ela se aproximava da verdade.

    - Que maravilha! – Exclamou o senhor baixinho – Então tudo se resume ao que o ser humano cria na sua imaginação?

    - Bem assim! – Concluiu o senhor negro.

    Os dois foram embora naquele inicio de noite. Na cabeça do garotinho, no entanto, os dragões eram fascinantes. O que mais ficou na sua memória ele foi repetindo pelo caminho:

    - O dragão devorador de alface.


Conto: Odair José, Poeta Cacerense