quinta-feira, 24 de abril de 2025

Do Outro Lado do Rio

    Era uma tarde sonolenta de julho, quando o vento soprava preguiçoso sobre as águas turvas do Rio Paraguai. A Praia do Daveron, com seus bancos de areia dourada, estava quase vazia, exceto por alguns pescadores ao longe e uma criança solitária empinando uma pipa vermelha. O sol pendia baixo no céu, espalhando tons de cobre sobre a cidade antiga de Cáceres. 
 
    Lira gostava de caminhar ali ao entardecer. Filho de um barqueiro, conhecia o rio como quem conhece a palma da mão. Sabia onde a correnteza era traiçoeira, onde os botos costumavam aparecer, e onde os antigos diziam ouvir vozes à noite. Ele andava descalço, com os pés afundando na areia ainda quente, levando no bolso apenas um estilingue e um maço de folhas secas que gostava de cheirar, dizendo que guardavam o cheiro da mata. 
 
    Do outro lado da praia, sentada sobre uma toalha com estampa de flores coloridas, uma garota folheava um livro grosso de capa preta. Seu nome era Clara. Usava óculos redondos demais para o rosto pequeno e tinha um sotaque que não pertencia àquelas bandas. Viera de São Paulo, passar as férias na casa dos avós maternos, tentando fugir da cidade e das sombras que a seguiam desde que sua mãe desaparecera no centro velho da capital. 
 
    O rapaz a notou primeiro. Achou estranho alguém ler um livro tão sério na praia. Aproximou-se devagar, como quem não quer espantar uma ave rara. 
 
    — O que você tá lendo? — perguntou, com a voz pastosa de quem se enche de coragem só depois de decidir. 
 
    Clara levantou os olhos. Ele tinha cabelos desgrenhados e uma pele tostada de sol. Parecia ter saído de um daqueles quadros antigos pendurados no Museu da cidade. 
 
    Frankenstein, de Mary Shelley. Você já ouviu falar? 
 
    Ele negou com a cabeça, mas sorriu curioso. 
 
    — É tipo... uma história de monstro? 
 
    Ela hesitou, depois sorriu também. 
 
    — De certa forma, sim. Mas o monstro é mais humano que a maioria das pessoas. 
 
    Sentaram-se juntos na areia. Clara leu em voz alta um trecho em que a criatura observa a neve pela primeira vez. Lira, sem entender tudo, ficou em silêncio. Depois, mostrou a ela como fazer pequenos apitos com folhas de mangueira. Riram. Falaram de coisas simples e outras que doíam. Ele contou sobre as histórias que o pai lhe contava nas noites de cheia — sobre mulheres que viravam peixes e barcos que navegavam sozinhos. Ela falou de sua mãe, da ausência, e de como às vezes se sentia feita de retalhos de lembrança. 
 
    O sol desapareceu por trás da linha do rio, tingindo o céu de um rosa melancólico. 
 
    — Sabe — disse Clara —, acho que você entende mais de monstros do que imagina. 
 
    O rapaz fitou o horizonte, onde a mata começava a engolir a margem oposta do rio. 
 
    — Talvez porque, aqui, a gente cresce escutando que todo mundo guarda um monstro dentro de si. Mas nem todo monstro é mau. Às vezes ele só quer ser escutado. 
 
    Naquela noite, enquanto as primeiras estrelas brotavam sobre Cáceres e o som dos grilos tomava o ar, Lira e Clara fizeram uma promessa silenciosa: mesmo que viessem de mundos distantes, enquanto existisse o rio, enquanto existisse a praia e a tarde cor de bronze, eles sempre se encontrariam de novo — nem que fosse apenas na memória um do outro. 
 
Conto: Odair José, Poeta Cacerense

Nenhum comentário:

Postar um comentário