O vento chegou antes do som.
Um sopro quente, vindo do oeste, trazendo consigo o cheiro do rio e algo mais: o farfalhar seco de asas incontáveis.
Era como se o céu se desfizesse em poeira viva.
Laura estava em casa quando as janelas começaram a vibrar.
Correu para a varanda e viu a nuvem — não de chuva, mas de corpos.
Milhares, milhões de gafanhotos, cobrindo o sol até transformá-lo num círculo avermelhado.
O rádio estourava com alertas da Defesa Civil.
“Permaneçam em casa. Fechem portas e janelas.”
Mas a cidade já estava de joelhos.
Em poucos minutos, os jardins sumiram.
As árvores foram devoradas até o osso, o gramado virou lama, e o som — aquele roçar incessante de asas — lembrava uma oração invertida.
Na Praça Barão, os primeiros que tentaram filmar o fenômeno foram engolidos por uma massa viva que parecia pensar.
Os gafanhotos avançavam em redemoinhos, entrando pelas casas, cobrindo muros, arrastando tudo.
Laura, ofegante, vestiu o jaleco e seguiu para a universidade.
Precisava compreender, mesmo que o medo lhe corroesse a razão.
No laboratório, acendeu as luzes de emergência e abriu as gavetas antigas do acervo histórico.
Entre mapas e documentos de 1800 e poucos, encontrou algo que a fez estremecer: “Planta da antiga Vila Maria do Paraguai — Campo dos Silenciados.
Local destinado ao sepultamento dos escravizados mortos em cativeiro.”
A planta mostrava, com traços pálidos, o mesmo lugar onde hoje estava a Praça Barão.
O coração da cidade erguido sobre ossos e esquecimento.
Laura sentiu um arrepio percorrer o corpo.
As pragas não vinham do nada — eram respostas.
Respostas da terra, clamando memória. No corredor escuro, o padre Augusto apareceu, encharcado de chuva.
— Eu sabia que a senhora viria aqui.
— Padre, o senhor sabia disso? O campo, os sepultamentos?
Por um pequeno instante ele hesitou.
— Há registros apagados, nomes riscados nos livros da paróquia. O Barão… o homem que dá nome à praça… foi quem ordenou o silêncio.
Laura olhou pela janela: o céu agora era uma cortina viva.
Os gafanhotos batiam contra o vidro, e, entre as asas, parecia haver palavras desenhadas, padrões que se repetiam.
— Eles querem ser lembrados — disse ela, quase em transe. — Cada praga é um chamado.
O padre cruzou os braços.
— Ou uma contagem regressiva.
Do lado de fora, a praça desaparecia sob o enxame.
Os postes piscavam, a energia falhava, e o chão parecia tremer sob o peso da multidão de asas.
No meio do caos, Seu Adão andava calmamente, coberto de poeira dourada.
Os gafanhotos não o tocavam.
Ele parou diante da fenda — agora larga o suficiente para revelar degraus de pedra descendo ao escuro — e começou a cantar.
A voz era antiga, rouca, e vinha de outro tempo:
um lamento em língua esquecida.
Enquanto a cidade rezava por luz,
a terra abria os olhos.
Continua...
Conto: Odair José, Poeta Cacerense

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