sábado, 20 de dezembro de 2025

As 7 pragas na Praça Barão (Parte 4) - Os gafanhotos

    O vento chegou antes do som. Um sopro quente, vindo do oeste, trazendo consigo o cheiro do rio e algo mais: o farfalhar seco de asas incontáveis. Era como se o céu se desfizesse em poeira viva. 
 
    Laura estava em casa quando as janelas começaram a vibrar. Correu para a varanda e viu a nuvem — não de chuva, mas de corpos. Milhares, milhões de gafanhotos, cobrindo o sol até transformá-lo num círculo avermelhado. 
 
    O rádio estourava com alertas da Defesa Civil. “Permaneçam em casa. Fechem portas e janelas.” Mas a cidade já estava de joelhos. 
 
    Em poucos minutos, os jardins sumiram. As árvores foram devoradas até o osso, o gramado virou lama, e o som — aquele roçar incessante de asas — lembrava uma oração invertida. 
 
    Na Praça Barão, os primeiros que tentaram filmar o fenômeno foram engolidos por uma massa viva que parecia pensar. Os gafanhotos avançavam em redemoinhos, entrando pelas casas, cobrindo muros, arrastando tudo. 
 
    Laura, ofegante, vestiu o jaleco e seguiu para a universidade. Precisava compreender, mesmo que o medo lhe corroesse a razão. No laboratório, acendeu as luzes de emergência e abriu as gavetas antigas do acervo histórico. Entre mapas e documentos de 1800 e poucos, encontrou algo que a fez estremecer: “Planta da antiga Vila Maria do Paraguai — Campo dos Silenciados. Local destinado ao sepultamento dos escravizados mortos em cativeiro.” 
 
    A planta mostrava, com traços pálidos, o mesmo lugar onde hoje estava a Praça Barão. O coração da cidade erguido sobre ossos e esquecimento. 
 
    Laura sentiu um arrepio percorrer o corpo. As pragas não vinham do nada — eram respostas. Respostas da terra, clamando memória. No corredor escuro, o padre Augusto apareceu, encharcado de chuva. 
 
    — Eu sabia que a senhora viria aqui. 
 
    — Padre, o senhor sabia disso? O campo, os sepultamentos? 
 
    Por um pequeno instante ele hesitou. 
 
    — Há registros apagados, nomes riscados nos livros da paróquia. O Barão… o homem que dá nome à praça… foi quem ordenou o silêncio. 
 
    Laura olhou pela janela: o céu agora era uma cortina viva. Os gafanhotos batiam contra o vidro, e, entre as asas, parecia haver palavras desenhadas, padrões que se repetiam. 
 
    — Eles querem ser lembrados — disse ela, quase em transe. — Cada praga é um chamado. 
 
    O padre cruzou os braços. 
 
    — Ou uma contagem regressiva. 
 
    Do lado de fora, a praça desaparecia sob o enxame. Os postes piscavam, a energia falhava, e o chão parecia tremer sob o peso da multidão de asas. 
 
    No meio do caos, Seu Adão andava calmamente, coberto de poeira dourada. Os gafanhotos não o tocavam. Ele parou diante da fenda — agora larga o suficiente para revelar degraus de pedra descendo ao escuro — e começou a cantar. A voz era antiga, rouca, e vinha de outro tempo: um lamento em língua esquecida. 
 
    Enquanto a cidade rezava por luz, a terra abria os olhos. 
 
Continua... 
 
Conto: Odair José, Poeta Cacerense

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