Cáceres nunca dormiu direito.
Mesmo à noite, o calor se infiltra pelas frestas da casa como um bicho insistente, desses que não se vê, mas se sente roçando a pele. Nos anos 90, eu ainda acreditava que o calor era o maior dos meus problemas.
Meu nome é Alfredo. Sou — ou fui — dono de uma pequena loja de materiais elétricos na Avenida Gal. Osório. Nada grande. Nunca foi. Mas durante muito tempo deu para viver. Deu para pagar as contas, manter a casa, comprar o vestido de formatura da escola da Bianca quando ela ainda acreditava que essas coisas importavam.
Agora, as contas se acumulam na gaveta da mesa da sala, misturadas a panfletos antigos e notas fiscais amareladas. Eu evito abri-las. Finjo que ainda posso escolher o momento certo para encarar a realidade.
Elisa não tem esse luxo.
Ela sai de casa antes do sol nascer e volta quando a noite já perdeu o frescor. Enfermeira. Plantões dobrados no hospital. Às vezes três numa semana. Às vezes quatro. Ela diz que é para ajudar nas despesas, e eu quero acreditar. Quero mesmo.
Mas a dúvida cresce como mofo em parede úmida.
— Hoje eu durmo lá — ela disse certa vez, vestindo o branco já amarrotado.
— De novo? — perguntei, tentando parecer apenas cansado.
Ela não respondeu. Apenas amarrou o cabelo e saiu.
Quando a porta bate, o silêncio da casa se torna ofensivo.
Bianca quase não fala comigo. Dezessete anos, sempre de fone no ouvido, o quarto fechado, respostas curtas, um olhar que mistura desprezo e cansaço. Não sei em que momento deixei de ser pai para me tornar apenas um móvel antigo da casa.
— Vou na festa da escola — ela avisou naquela sexta-feira, sem me olhar.
— Que festa?
— Festa junina atrasada. Todo mundo vai.
Elisa estava de plantão. Ou disse que estava.
Fui buscar Bianca mais tarde. Não por cuidado. Por hábito. Talvez por medo de ficar sozinho.
A escola estava cheia. Música alta, risadas, pais fingindo que ainda entendem os filhos. Foi ali que vi Fernanda.
Ela estava ao lado de Bianca, rindo alto, gesticulando, ocupando o espaço como quem não pede licença ao mundo. Não era apenas beleza no sentido óbvio. Era, também, presença. Um tipo de luz que me desconcertou.
E o que me assustou não foi vê-la.
Foi perceber que eu não conseguia desviar o olhar.
Naquele instante, algo em mim se rompeu — não de forma barulhenta, mas como rachadura em vidro antigo. Pequena. Silenciosa. Irreversível.
Voltei para casa dirigindo devagar demais, com Bianca em silêncio no banco ao lado, e uma pergunta martelando na cabeça:
Quando foi que eu me perdi de mim mesmo?
O calor daquela noite não me deixou dormir.
Mas não foi só o calor.
Continua...
Conto: Odair José, Poeta Cacerense
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