A cidade já não dormia.
Depois da chuva de gafanhotos, Cáceres virou uma ferida aberta.
Postes queimados, telhados furados, casas em silêncio.
A Praça Barão permanecia interditada, mas o interdito, ali, já não servia de nada.
Mesmo assim, naquele domingo, o padre Augusto decidiu manter a procissão.
Disse que era preciso rezar — ou pelo menos fingir coragem.
Carregaram o andor de Nossa Senhora pelas ruas, entre velas e murmúrios, até a borda da praça.
Mas quando o cortejo se aproximou do Marco do Jauru, o ar mudou de densidade.
Um som grave, como trovão debaixo da terra, ecoou.
As velas se apagaram todas de uma vez.
E então o zumbido começou.
Primeiro baixo, depois ensurdecedor.
Do alto das árvores, do interior das rachaduras e das bocas de bueiro, saíram criaturas enormes — vespões, pretos e amarelos, do tamanho de punhos.
Suas asas batiam com violência, cortando o ar.
O primeiro ataque veio como um raio.
As pessoas caíam, cobertas por enxames que pareciam pensar, escolher os alvos, mirar os rostos que rezavam mais alto.
O caos dominou as ruas.
O som das orações virou grito, o cheiro de incenso virou medo.
Laura e o padre correram para dentro da igreja.
Do lado de fora, os sinos batiam sozinhos, e os vespões rodeavam o campanário como se quisessem entrar.
No altar, uma imagem da santa começou a rachar, do peito até o véu.
— Padre — disse Laura, com voz trêmula —, eles estão respondendo.
— Respondendo a quê?
Ela olhou para o chão.
— Ao que foi esquecido.
O teto tremeu.
Um pedaço do vitral caiu, cortando o ombro do padre.
Sangue escorreu sobre o mármore e caiu em gotas no piso da igreja.
Quando a última gota tocou o chão, o zumbido cessou.
Do lado de fora, silêncio.
Um silêncio absoluto.
Laura saiu devagar e viu que os vespões haviam recuado — pairavam sobre a praça, imóveis, formando uma espiral.
No centro, o Marco do Jauru começava a rachar.
As pedras estalavam como dentes quebrando.
O peito da escultura se abriu, revelando um buraco escuro — um túnel.
Soldados chegaram em seguida, tentando conter a multidão.
Um deles, curioso, desceu com uma lanterna.
Dez segundos depois, o som de seu grito subiu pelas fendas, seco e breve.
Os outros tentaram descer.
Voltaram pálidos, mudos.
Nenhum soube explicar o que havia lá embaixo, apenas repetiam as mesmas palavras, entre tremores: “Correntes… e vozes… muitas vozes…”
Laura aproximou-se e viu, nas bordas do túnel, inscrições gravadas em pedra.
Mistura de latim e iorubá:
Memoria in carne. Dor clama por lembrança.
O padre fez o sinal da cruz.
— Foi aqui que o Barão selou o que não quis confessar.
Do coreto, Seu Adão observava tudo.
Tirou o chapéu, ajoelhou-se e murmurou:
— Quatro se foram.
Depois levantou o olhar para o céu avermelhado e completou:
— Agora o rio vai falar.
Continua...
Conto: Odair José, Poeta Cacerense

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