A chuva começou antes do amanhecer — uma dessas chuvas pesadas, sem relâmpagos, que caem como se o céu estivesse cansado de segurar tanta lembrança.
A Praça Barão estava vazia, cercada por fitas amarelas e silêncio.
O coreto, ainda manchado das tragédias anteriores, parecia observar tudo com olhos de pedra.
Mesmo com o isolamento, ninguém conseguia evitar passar por lá.
Era o coração da cidade.
E corações, mesmo feridos, insistem em pulsar.
A bióloga Laura chegou cedo, com um caderno nas mãos e olheiras profundas.
As autoridades haviam pedido sua ajuda novamente — mas no fundo, ela sabia que não havia mais nada de racional a investigar.
As amostras, as análises, os relatórios… tudo apontava para o impossível.
Enquanto caminhava entre as poças, ouviu um som rouco, distante.
Olhou para o alto.
Os fios de energia e as árvores da praça estavam cobertos por corvos.
Centenas deles.
Encharcados, imóveis, com os olhos brilhando como contas de vidro.
Ela ficou parada, hipnotizada.
O padre Augusto apareceu logo depois, trazendo um guarda-chuva e o mesmo semblante abatido.
— Eu avisei — disse ele, sem ironia. — A terceira chegou.
— São só aves… — respondeu Laura, embora sua voz tremesse.
— Nenhuma ave comum olha o homem desse jeito.
Os dois ficaram ali, observando o estranho silêncio dos corvos.
Até que, como se obedecessem a uma ordem invisível, eles começaram a se mover.
Primeiro um, depois dois, depois todos.
O som das asas rasgou o ar, e o céu se cobriu de preto.
Os corvos começaram a cair.
Não voavam — caíam.
Desabavam sobre o chão, sobre os telhados, sobre os carros, como chuva viva.
Alguns batiam contra as janelas, outros simplesmente despencavam, mortos.
E os que ainda viviam, cambaleavam e atacavam o que encontravam.
Gritos ecoaram pelas ruas.
Pessoas corriam, escorregavam, tropeçavam nos corpos das aves.
O chão se tornou uma manta negra de penas e sangue.
Laura e o padre se abrigaram dentro da igreja novamente.
O som dos bicos batendo contra as portas era como o de pedrinhas em um caixão.
— Eles não estão atacando — disse o padre. — Estão tentando entrar.
— Entrar pra quê? — perguntou Laura, ofegante.
Ele fez o sinal da cruz. — Pra confessar.
Quando o barulho cessou, abriram a porta.
A praça estava coberta de silêncio e morte.
O cheiro era insuportável.
Entre os corpos dos corvos, Laura percebeu algo: alguns tinham nas asas o mesmo pó escuro que encontrara nas formigas — uma poeira quase mineral.
Tocou com a ponta dos dedos. Era fria, mas pulsava.
O padre recolheu um dos pássaros e o colocou sobre o altar.
— Antigamente — disse ele —, quando alguém morria sem confissão, soltavam corvos para carregar a alma.
Laura olhou para ele. — E se esses não vieram levar, padre… mas devolver?
O homem ficou em silêncio.
Do lado de fora, Seu Adão caminhava lentamente pela praça.
Chovia de novo.
Ele passou entre os corpos dos pássaros, rezando baixo, e parou diante da fenda que agora se alargava como uma boca.
Do fundo dela, subia um vapor leve, quente, e um som quase inaudível — como se alguém sussurrasse nomes.
Ele fechou os olhos e murmurou:
— Três já clamaram. Quatro ainda sonham.
— Mas o sonho… o sonho está acordando.
Continua...
Conto: Odair José, Poeta Cacerense

Nenhum comentário:
Postar um comentário