terça-feira, 9 de dezembro de 2025

As 7 pragas na Praça Barão (Parte 3) - Os corvos

    A chuva começou antes do amanhecer — uma dessas chuvas pesadas, sem relâmpagos, que caem como se o céu estivesse cansado de segurar tanta lembrança. A Praça Barão estava vazia, cercada por fitas amarelas e silêncio. O coreto, ainda manchado das tragédias anteriores, parecia observar tudo com olhos de pedra. 
 
    Mesmo com o isolamento, ninguém conseguia evitar passar por lá. Era o coração da cidade. E corações, mesmo feridos, insistem em pulsar. 
 
    A bióloga Laura chegou cedo, com um caderno nas mãos e olheiras profundas. As autoridades haviam pedido sua ajuda novamente — mas no fundo, ela sabia que não havia mais nada de racional a investigar. As amostras, as análises, os relatórios… tudo apontava para o impossível. 
 
    Enquanto caminhava entre as poças, ouviu um som rouco, distante. Olhou para o alto. Os fios de energia e as árvores da praça estavam cobertos por corvos. 
 
    Centenas deles. Encharcados, imóveis, com os olhos brilhando como contas de vidro. 
 
    Ela ficou parada, hipnotizada. O padre Augusto apareceu logo depois, trazendo um guarda-chuva e o mesmo semblante abatido. 
 
    — Eu avisei — disse ele, sem ironia. — A terceira chegou. 
 
    — São só aves… — respondeu Laura, embora sua voz tremesse. 
 
    — Nenhuma ave comum olha o homem desse jeito. 
 
    Os dois ficaram ali, observando o estranho silêncio dos corvos. Até que, como se obedecessem a uma ordem invisível, eles começaram a se mover. Primeiro um, depois dois, depois todos. O som das asas rasgou o ar, e o céu se cobriu de preto. 
 
    Os corvos começaram a cair. Não voavam — caíam. Desabavam sobre o chão, sobre os telhados, sobre os carros, como chuva viva. Alguns batiam contra as janelas, outros simplesmente despencavam, mortos. E os que ainda viviam, cambaleavam e atacavam o que encontravam. 
 
    Gritos ecoaram pelas ruas. Pessoas corriam, escorregavam, tropeçavam nos corpos das aves. O chão se tornou uma manta negra de penas e sangue. 
 
    Laura e o padre se abrigaram dentro da igreja novamente. O som dos bicos batendo contra as portas era como o de pedrinhas em um caixão. 
 
    — Eles não estão atacando — disse o padre. — Estão tentando entrar. 
 
    — Entrar pra quê? — perguntou Laura, ofegante. 
 
    Ele fez o sinal da cruz. — Pra confessar. 
 
    Quando o barulho cessou, abriram a porta. A praça estava coberta de silêncio e morte. O cheiro era insuportável. 
 
    Entre os corpos dos corvos, Laura percebeu algo: alguns tinham nas asas o mesmo pó escuro que encontrara nas formigas — uma poeira quase mineral. Tocou com a ponta dos dedos. Era fria, mas pulsava. 
 
    O padre recolheu um dos pássaros e o colocou sobre o altar. 
 
    — Antigamente — disse ele —, quando alguém morria sem confissão, soltavam corvos para carregar a alma. 
 
    Laura olhou para ele. — E se esses não vieram levar, padre… mas devolver? 
 
    O homem ficou em silêncio. 
 
    Do lado de fora, Seu Adão caminhava lentamente pela praça. Chovia de novo. Ele passou entre os corpos dos pássaros, rezando baixo, e parou diante da fenda que agora se alargava como uma boca. Do fundo dela, subia um vapor leve, quente, e um som quase inaudível — como se alguém sussurrasse nomes. 
 
    Ele fechou os olhos e murmurou: 
 
    — Três já clamaram. Quatro ainda sonham. 
 
    — Mas o sonho… o sonho está acordando. 
 
Continua... 
 
Conto: Odair José, Poeta Cacerense

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