Houve um tempo em que achei que poderia conciliar as duas paixões: a mulher e a escrita. Acreditei, tolo que sou, que seria possível amar com o corpo e com a pena, dividir os dias entre o colo de alguém e o silêncio necessário das ideias. Mas aprendi, com cada história interrompida, com cada adeus não tão poético quanto merecia, que a escrita é uma amante ciumenta — e, pior, silenciosa.
Dizem que o amor precisa de presença. E como explicar que meu corpo até está ali, no sofá, na cama, na mesa do café, mas que minha alma se encolhe num canto onde ela não pode entrar? Como traduzir que, mesmo de mãos dadas, estou revisando um verso, colhendo uma imagem, tentando encaixar o mundo inteiro em duas linhas?
Elas não entendem, e talvez eu também não soubesse explicar. Que o isolamento não é desinteresse, é necessidade. Que o sumiço não é desprezo, é imersão. Que, quando fecho a porta e deixo o mundo lá fora, não estou fugindo de ninguém — estou buscando algo que nem sei o nome. E isso dói. Mais nelas, que não escolheram conviver com fantasmas. Mais em mim, que escolhi.
A escrita pede tempo, silêncio e feridas abertas. Pede que eu pare no meio de um beijo porque me veio um verso. Que eu anote uma metáfora no guardanapo enquanto ela me conta algo importante. Que eu acorde de madrugada, não para abraçá-la, mas para anotar um sonho que talvez vire conto. A escrita tem dessas crueldades.
E há os poemas, claro. Ah, os poemas. Quase sempre escritos para outras — que não existem, ou que existiram só por um momento e ficaram eternizadas numa estrofe. E como dizer que o poema nunca é sobre quem pensa que é? Ou pior, que às vezes é, mas já foi, já passou, e agora só importa o efeito da palavra, não o passado que a gerou?
Já vi olhares de ciúmes para papéis. Já fui acusado de amar demais as letras e de menos quem estava ao meu lado. Já ouvi: “Você escreve coisas tão bonitas, mas não me escreve nada.” Como se o amor que ofereço pudesse ser mensurado em versos. Como se eu não tivesse entregado muito mais do que um poema — entregado a mim mesmo, inteiro, ainda que dividido.
A introspecção também pesa. O silêncio, os olhos vagando por dentro, as respostas dadas com um “hã?” que denuncia a viagem. Elas querem alguém inteiro no agora, e eu vivo metade no passado, metade no imaginário. Como amar alguém que só está aqui pela metade?
Às vezes, penso que serei sempre esse: o que ama e afasta. O que acolhe e se isola. O que escreve para entender o mundo, e no processo, se distancia dele. Não sei. Só sei que sigo escrevendo. Não por escolha, mas por condição. Porque se me tirarem isso, o silêncio me mata. E com ele, a última chance de amar, mesmo que seja de longe, mesmo que seja com palavras.
Talvez um dia eu encontre alguém que entenda. Que não tente competir com a escrita, mas caminhe ao lado dela. Que aceite perder-me para os poemas, desde que eu volte. E eu volto. Sempre volto. Mais calado, mais estranho, mais inteiro. E talvez, um pouco mais pronto para amar.
Crônica: Odair José, Poeta Cacerense
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