quinta-feira, 17 de julho de 2025

O homem que aprendeu a ler e não lia

    Ele aprendeu a ler aos sete, como todos da sua turma. Fez o beabá, gaguejou as primeiras sílabas, destravou o mundo com a ponta dos olhos. A professora, emocionada, disse: “Você agora tem a chave do infinito.” Mas ele achou exagero. Preferia soltar pipa. 
 
    Cresceu. A leitura foi lhe exigida como escada para empregos, provas, manuais de instrução. Aprendeu a decifrar placas, contratos, receitas de bolo e promessas políticas. Lia como quem mastiga pedra — com esforço, sem prazer. Nunca entendeu os que choravam em romances ou sorriam com poemas. Para ele, livros eram caixas sem surpresa, sempre pesadas demais. 
 
    Na juventude, experimentou Camus por insistência de uma garota bonita. Leu uma página e bocejou. “Gente morta escrevendo tristeza, pra quê?”, resmungou. Voltou ao futebol. A garota partiu com um rapaz que recitava Drummond na praça. 
 
    Teve empregos, filhos, uma vida funcional. Sabia ler, lia o necessário — rótulos, extratos, mensagens de celular. Nunca passou de cinquenta páginas em livro algum. E se vangloriava disso, como quem sobreviveu a uma guerra sem jamais entrar nela. 
 
    Na velhice, uma tarde, ficou sozinho com a biblioteca herdada do irmão. Estantes inteiras. Pegou um exemplar de capa gasta: “Memórias Póstumas de Brás Cubas”. Abriu por abrir. Leu três linhas. Sentiu um incômodo. Leu mais três. A ironia o feriu como navalha. 
 
    Largou o livro. 
 
    Saiu para a varanda. Sentou-se. As árvores estavam imóveis. O vento também parecia calado. Pela primeira vez, teve a sensação de que havia vivido menos do que poderia. Não em tempo, mas em camadas. Como quem habita uma casa, mas nunca sobe as escadas. 
 
    Morreu alguns meses depois. Seus filhos venderam a biblioteca. Na lápide, escreveram: "Aqui jaz um homem de palavra." Mas as palavras, essas, ele nunca quis conhecer de verdade. 
 
Conto: Odair José, Poeta Cacerense

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