Encontrou a caixa por acaso, ao limpar o armário onde só guardava coisas que preferia esquecer.
Ela estava ali, intacta, como uma armadilha. Nenhuma etiqueta, nenhum aviso. Apenas uma caixa de papelão, morna de poeira, pesada de memórias.
Abriu com um gesto lento, quase cerimonial.
Dentro, os cadernos — aqueles de capa dura, alguns decorados com colagens, outros com frases sublinhadas com raiva. Os diários. Os testemunhos de um tempo em que viver doía, e escrever parecia cura.
Hesitou.
Talvez fosse melhor fechá-los e manter a ficção de que nunca existiram.
Mas a curiosidade tem sempre um pacto com o abismo.
E então leu.
A primeira frase era uma tragédia em miniatura:
"Hoje ela não olhou pra mim. Acho que vou morrer."
Riu. Mas a risada foi curta, engasgada.
Havia algo ali. Algo que já tinha sido verdade.
E a verdade, mesmo ridícula, nunca é inofensiva.
Passou as páginas como quem folheia os escombros de uma casa incendiada.
Cada palavra tinha sido escrita com urgência, como se o mundo fosse acabar naquela manhã, naquela tarde, naquela ausência.
E, de certo modo, havia mesmo acabado — várias vezes.
O que o desconcertava não era a ingenuidade.
Era o excesso de significado.
A forma como tudo — absolutamente tudo — era vivido com intensidade religiosa:
um toque de mão, uma palavra atravessada, o barulho do coração quando alguém chamava seu nome.
Mas agora…
Agora, aquele que escrevia estava morto.
Ou, pelo menos, enterrado sob tantos outros que ele teve que se tornar para continuar existindo.
Foi então que a pergunta se formou, nítida:
Quem era esse?
O garoto que escrevia ou o homem que lia?
Porque o que lia julgava, zombava, tentava dissociar-se da dor alheia —
mas o que escrevia sabia exatamente o que estava fazendo:
tentava não desaparecer.
E foi aí que ele entendeu.
Aquelas palavras estavam mortas, sim.
Mas não por desgaste do tempo.
Foram assassinadas.
Por ele mesmo.
Por esse leitor cético, cansado, que agora as contemplava com ar de superioridade.
Fechou o caderno.
Por um instante, quis pedir desculpas a si mesmo.
Mas era tarde demais.
A criança que escrevia ainda estava ali, presa nas entrelinhas, esperando ser salva.
Mas o adulto não tinha mais as palavras certas.
Só o silêncio.
Conto: Odair José, Poeta Cacerense
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