sábado, 8 de novembro de 2025

As 7 pragas na Praça Barão (Parte 2) - As abelhas

    A semana passou como uma sombra que finge ser luz. Na segunda-feira, a prefeitura anunciou que tudo estava sob controle. “Um surto natural”, disseram. “Fenômeno isolado.” Mas quem passou pela Praça Barão naquela manhã sentiu o ar diferente — como se o vento evitasse tocar o chão. 
 
    Os garis lavaram o piso com jatos de água e cloro. O cheiro de formigas queimadas misturava-se ao perfume das árvores e à lembrança recente dos gritos. Mesmo assim, na sexta-feira seguinte, os bares voltaram a abrir. Porque o medo, quando não tem explicação, logo vira costume. 
 
    Entre as mesas, sentava-se Dra. Laura Nogueira, bióloga da universidade local. Ela observava o movimento enquanto tomava uma cerveja morna. Estava ali por curiosidade científica — ou talvez por inquietação. As amostras das formigas que recolhera não faziam sentido algum: espécies de regiões distintas, impossíveis de coexistirem, agindo como um só organismo. 
 
    Mas o que mais a perturbava era outra coisa. Nas lâminas de microscópio, entre os fragmentos, havia uma substância escura, viscosa — como se fosse sangue fossilizado. 
 
    Laura olhava para o chão da praça e imaginava raízes de carne, veias antigas pulsando sob os paralelepípedos. Ela não sabia explicar, mas sentia que aquilo não era apenas biologia. Era memória. 
 
    Pouco antes do pôr do sol, o padre Augusto se aproximou dela. Um homem alto, olhar cansado, conhecido pelos sermões sobre pecado e esquecimento. 
 
    — A senhora acredita em coincidências, doutora? — perguntou, com a voz rouca. 
 
    — Em ciência, padre, coincidência é apenas o nome que damos ao que ainda não entendemos. 
 
    Ele assentiu. 
 
    — Então a senhora entenderá logo. A segunda praga está a caminho. 
 
    Laura riu, mas o riso morreu antes de nascer. O ar, de repente, ficou espesso. O vento cessou. E um zumbido começou a crescer, distante, metálico — como se o céu estivesse se abrindo. 
 
    De repente, uma nuvem negra cobriu o entardecer. Abelhas. Milhares. Talvez milhões. 
 
    Elas desciam como uma chuva viva, grudando em cabelos, roupas, rostos. O som era ensurdecedor. As pessoas corriam, tropeçavam, batiam nas portas dos bares. O zumbido se tornava grito. 
 
    O padre agarrou Laura pelo braço e a arrastou para dentro da igreja em frente à praça. Fechou as portas. As janelas tremeram sob o impacto das abelhas. De fora, vinham gritos, orações, o som de copos quebrando e motores tentando fugir. 
 
    — Padre, o que é isso? — ela perguntou, apavorada. 
 
    Ele olhou para o crucifixo e respondeu baixo: 
 
    — No Êxodo, as pragas não vinham do céu nem da terra. Vinham da culpa dos homens. 
 
    Lá fora, o céu parecia arder. As abelhas atacavam sem razão, cegas, furiosas, e quando finalmente o vento as dispersou, a praça era um deserto de corpos e asas partidas. 
 
    Mais uma sexta-feira. Mais um selo rompido. 
 
    Na manhã seguinte, os jornais chamavam de “tragédia natural”. Mas Laura, diante de seu microscópio, viu algo novo nas asas das abelhas mortas: símbolos minúsculos, como inscrições queimadas na quitina. Letreiros invisíveis à vista comum. 
 
    Ela anotou no caderno: “Não são apenas insetos. São mensageiros. E o que querem transmitir é mais antigo do que nós.” 
 
    Enquanto isso, no coreto vazio, Seu Adão deixava flores frescas sobre o chão rachado e murmurava: 
 
    — Duas já foram. Cinco ainda dormem. 
 
Continua... 
 
Conto: Odair José, Poeta Cacerense

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