A semana passou como uma sombra que finge ser luz.
Na segunda-feira, a prefeitura anunciou que tudo estava sob controle.
“Um surto natural”, disseram. “Fenômeno isolado.”
Mas quem passou pela Praça Barão naquela manhã sentiu o ar diferente — como se o vento evitasse tocar o chão.
Os garis lavaram o piso com jatos de água e cloro.
O cheiro de formigas queimadas misturava-se ao perfume das árvores e à lembrança recente dos gritos.
Mesmo assim, na sexta-feira seguinte, os bares voltaram a abrir.
Porque o medo, quando não tem explicação, logo vira costume.
Entre as mesas, sentava-se Dra. Laura Nogueira, bióloga da universidade local.
Ela observava o movimento enquanto tomava uma cerveja morna.
Estava ali por curiosidade científica — ou talvez por inquietação.
As amostras das formigas que recolhera não faziam sentido algum:
espécies de regiões distintas, impossíveis de coexistirem, agindo como um só organismo.
Mas o que mais a perturbava era outra coisa.
Nas lâminas de microscópio, entre os fragmentos, havia uma substância escura, viscosa — como se fosse sangue fossilizado.
Laura olhava para o chão da praça e imaginava raízes de carne, veias antigas pulsando sob os paralelepípedos.
Ela não sabia explicar, mas sentia que aquilo não era apenas biologia.
Era memória.
Pouco antes do pôr do sol, o padre Augusto se aproximou dela.
Um homem alto, olhar cansado, conhecido pelos sermões sobre pecado e esquecimento.
— A senhora acredita em coincidências, doutora? — perguntou, com a voz rouca.
— Em ciência, padre, coincidência é apenas o nome que damos ao que ainda não entendemos.
Ele assentiu.
— Então a senhora entenderá logo. A segunda praga está a caminho.
Laura riu, mas o riso morreu antes de nascer.
O ar, de repente, ficou espesso. O vento cessou.
E um zumbido começou a crescer, distante, metálico — como se o céu estivesse se abrindo.
De repente, uma nuvem negra cobriu o entardecer.
Abelhas. Milhares. Talvez milhões.
Elas desciam como uma chuva viva, grudando em cabelos, roupas, rostos.
O som era ensurdecedor. As pessoas corriam, tropeçavam, batiam nas portas dos bares.
O zumbido se tornava grito.
O padre agarrou Laura pelo braço e a arrastou para dentro da igreja em frente à praça.
Fechou as portas. As janelas tremeram sob o impacto das abelhas.
De fora, vinham gritos, orações, o som de copos quebrando e motores tentando fugir.
— Padre, o que é isso? — ela perguntou, apavorada.
Ele olhou para o crucifixo e respondeu baixo:
— No Êxodo, as pragas não vinham do céu nem da terra. Vinham da culpa dos homens.
Lá fora, o céu parecia arder.
As abelhas atacavam sem razão, cegas, furiosas, e quando finalmente o vento as dispersou, a praça era um deserto de corpos e asas partidas.
Mais uma sexta-feira.
Mais um selo rompido.
Na manhã seguinte, os jornais chamavam de “tragédia natural”.
Mas Laura, diante de seu microscópio, viu algo novo nas asas das abelhas mortas: símbolos minúsculos, como inscrições queimadas na quitina.
Letreiros invisíveis à vista comum.
Ela anotou no caderno:
“Não são apenas insetos. São mensageiros. E o que querem transmitir é mais antigo do que nós.”
Enquanto isso, no coreto vazio, Seu Adão deixava flores frescas sobre o chão rachado e murmurava:
— Duas já foram. Cinco ainda dormem.
Continua...
Conto: Odair José, Poeta Cacerense

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