segunda-feira, 21 de abril de 2025

Os Que Se Desfizeram - Capítulo 2 — A Que Costura o Invisível

    Ela não fala. Não porque não pode. Porque aprendeu que algumas verdades não cabem em palavras. E toda vez que tentava nomear o que sentia, uma parte de si morria um pouco. 
 
    Agora, prefere o fio. 
 
    Costura mantos com o que os outros deixam para trás: frases engolidas, memórias negadas, pedaços de pele emocional. Cada ponto é um silêncio aceito. Cada dobra, uma dor acolhida. 
 
    Seu ateliê é feito de matéria estranha — galhos que se curvam como agulhas, folhas que lembram papéis queimados, e uma luz morna que nunca tem fonte. 
 
    Às vezes, chegam novos. Cambaleantes, assustados, ainda com cheiro de gente normal. Ela os vê antes mesmo que atravessem a fronteira. Sente o ar tremular — como quando um raio se aproxima, mas ainda não caiu. 
 
    Naquela manhã, ela sentiu Elias. 
 
    Vinha partido por dentro. Com os olhos cheios de perguntas e os passos carregados de negação. Mas havia nele uma abertura — uma fenda onde o som do outro lado já sussurrava. 
 
    Ele entrou na clareira com a alma em desordem. Ela o olhou. Ele não disse nada. 
 
    Bom sinal. 
 
    Sentou-se, sem saber por quê. Ela trouxe um tecido translúcido — feito de silêncio antigo — e começou a costurar algo sobre seus ombros. Ele sentiu o calor. Sentiu também o choro que nunca chorou escorrendo, sem lágrimas, pela espinha. 
 
    “Quem é você?”, ele quis perguntar. Mas sua boca não se moveu. 
 
    Ela respondeu mesmo assim — com os dedos, com o fio, com o cheiro do ar. “Sou aquela que veste os que se desfazem.” 
 
    Naquela noite, Elias dormiu sob o manto costurado com suas próprias ausências. E sonhou que era feito de vento. E terra. E coisa nenhuma. 
 
    Quando acordou, a Costureira já não estava. Mas em seu colo, deixara uma agulha feita de osso. 
 
(Continua...) 
 
Conto: Odair José, Poeta Cacerense

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