Alguns chegam à beira da transformação e estancam.
Travam os músculos da alma. Emperram as engrenagens internas.
Fingem que não ouviram o chamado.
Acham que podem voltar.
Que basta querer.
Que basta esquecer.
Este foi um deles.
Chamava-se Mauro, no tempo dos nomes.
Tinha tudo planejado: a fuga, o sumiço, a redenção final em algum ermo.
Mas quando a floresta o acolheu —
quando o primeiro espelho interior quebrou —
ele não quis atravessar.
Quis resistir.
Acreditava que era mais forte que o processo.
Mais lúcido.
Mais… humano.
Por um tempo, conseguiu.
Fez abrigo.
Caçou.
Guardou a carteira no bolso.
Repetia o próprio nome antes de dormir, como um feitiço contra o esquecimento.
Mas com o tempo, o corpo começou a contrariá-lo.
Os olhos embaçaram.
A pele ficou pegajosa, translúcida em alguns pontos.
As unhas caíam e nasciam de novo, em espiral.
A voz — antes grave e firme —
virou um zumbido entalado na garganta.
Ele ainda falava.
Mas só dizia coisas que já não faziam sentido.
“Não estou perdido, estou descansando.”
“Amanhã volto pra casa.”
“Isso tudo é metáfora.”
Vivendo nas bordas da floresta, Mauro virou um santuário torto para quem hesita.
Os Desfeitos evitam passar por ali.
O cheiro é ácido.
O ar, viscoso.
Alguns dizem que ele guarda espelhos feitos de carne.
Outros, que ele enterra os nomes dos outros para se manter lembrado.
Elias chegou perto de sua caverna por engano.
Sentiu o cheiro antes de ver.
Mauro saiu das sombras, cambaleando.
Não era velho —
mas o tempo nele parecia mal distribuído.
Os olhos estavam intactos.
Apenas os olhos.
E isso era pior.
— Ainda dá tempo — ele disse, com a boca cheia de limo.
Elias não respondeu.
Mas algo em sua espinha se crispou.
O medo do que ele poderia se tornar, caso parasse agora.
Mauro estendeu a mão.
Nela, um relógio sem ponteiros.
— Você pode ficar aqui.
Comigo.
Nada muda se a gente não deixa.
Viu? Eu tô bem.
Um verme caiu do canto do olho dele.
Elias apenas caminhou para trás.
Sem pressa.
Mas sem hesitação.
(Continua...)
Conto: Odair José, Poeta Cacerense
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