sábado, 5 de abril de 2025

A sombra de Caim

    Caim caminhava entre as vinhas ressecadas, os dedos crispados de terra e suor. O céu não respondia, e sua oferta — fruto de seu trabalho, sua devoção — permanecia no altar como pedra rejeitada. Abel, com seu olhar sereno e o cordeiro recém sacrificado, parecia flutuar entre os favores divinos.
 
    Ele não entendia. Por que o Eterno preferia o sangue ao grão? Por que o esforço de suas mãos era menos digno do que o suspiro de um animal? Caim conhecia o relato do Éden — a escolha maldita, a queda, a espada flamejante. Sabia que viver era já uma consequência. Mas ali, naquela terra marcada pela expulsão, era preciso seguir escolhendo. E cada escolha era uma cruz. 
 
    No silêncio do campo, a voz ecoou dentro dele: — "Se procederes bem, não é certo que serás aceito? Mas se não procederes bem, o pecado jaz à porta, e o desejo dele será contra ti, mas cumpre a ti dominá-lo." 
 
    Caim caiu de joelhos. Era essa a angústia: o saber e o não querer. A liberdade que fere, a responsabilidade de ser humano. Sartre viria milênios depois chamá-la de "condenação à liberdade". Mas Caim já conhecia essa prisão sem grades: escolher é carregar o peso de todas as consequências possíveis. 
 
    O campo se estreitou. Abel vinha ao longe, sorrindo, sem culpa. E Caim sentiu a sombra crescer dentro de si. Não era o ódio que o movia, mas a dor de ser visto por um Deus que não o via. O gesto que seguiu foi menos fúria que desespero — um clamor sem palavras, um grito contra o silêncio divino. 
 
    E quando o sangue tocou a terra, Caim finalmente ouviu. Mas era tarde. 
 
    O solo, agora maldito, não gritaria apenas por justiça, mas por todas as escolhas que virão depois — e por todos os homens que, como Caim, teriam que viver com elas. 
 
Conto: Odair José, Poeta Cacerense

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