segunda-feira, 21 de abril de 2025

Os Que Se Desfizeram - Capítulo 4 — A Que Brinca com o Tempo

    Ela aparece sempre de repente. Sem som, sem aviso. Como um pensamento indesejado. Como uma lembrança que não é sua. 
 
    Tem o corpo de uma criança de sete, mas o olhar de quem já morreu e voltou mais de uma vez. Chama-se Nula — não porque esse é seu nome, mas porque é o que resta quando todos os nomes falham. 
 
    Ninguém sabe de onde veio. Alguns dizem que ela se recusou a crescer. Outros, que nunca teve tempo para isso. 
 
    Mas a verdade? A verdade é que Nula não vive no tempo dos outros. 
 
    Às vezes, fala como uma anciã: voz grave, mãos trêmulas, lembranças que ninguém deveria carregar. Outras vezes, corre descalça entre os galhos rindo alto, como se o mundo nunca tivesse doído. 
 
    Ela não tem lar. Tem clareiras passageiras. Tem memórias que mudam de forma toda vez que tenta contá-las. 
 
    E foi numa dessas clareiras que encontrou Elias. 
 
    Ele ainda usava o manto costurado pela mulher que silencia. Caminhava com a agulha de osso na mão, como quem não sabe se aquilo é arma ou bússola. 
 
    Nula apareceu ao lado dele sem aviso. 
 
    — Você tá mais pesado do que devia — disse, com um galho na mão e os pés cobertos de lama. 
 
    — O que... — começou Elias, mas ela já não ouvia. 
 
    Estava brincando com uma borboleta preta que não tinha asas. Depois, parou. 
 
    Olhou pra ele com um olhar tão velho que doeu. 
 
    — Você ainda acha que vai voltar. Mas não vai. Nenhum de nós volta. 
 
    E então, riu. Aquele riso de criança que desmonta as paredes internas. 
 
    — Mas você também ainda não virou. Tá preso entre o homem e o que vem depois. 
 
    Elias quis perguntar “o que vem depois?”. Mas Nula já estava andando para trás, como quem volta no tempo com os próprios pés. 
 
    Antes de sumir entre as árvores, disse: 
 
    — Quando doer tanto que você esquecer seu nome, me chama. Eu ensino a brincar com o que sobrar. 
 
(Continua...) 
 
Conto: Odair José, Poeta Cacerense

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