terça-feira, 8 de abril de 2025

A maldição de Betel

    O céu sobre Betel estava doente. 
 
    Nuvens giravam em espirais estranhas, como se uma mão invisível as estivesse moldando por trás do véu da realidade. E no centro da estrada poeirenta, caminhava Eliseu, recém-saído de Jericó, onde as águas haviam sido curadas — mas não o mundo. 
 
    Ele carregava mais que a unção de Elias. Carregava algo herdado na travessia dos céus, quando vira a carruagem de fogo. Desde então, ouvia murmúrios no vento, e seus sonhos estavam cheios de vozes que não eram humanas — antigas, vastas, e indiferentes. 
 
    Foi então que surgiram os jovens. Um grupo de quarenta e dois, vindos da cidade, armados de escárnio e olhos vazios. Suas vozes cortaram o ar: 
 
    — Sobe, careca! Vai-te, calvo! 
 
    Mas o insulto não era só contra um homem. Era contra o que falava através dele. E aquilo ouviu. 
 
    Eliseu parou. 
 
    O ar ao seu redor se adensou, como se o tempo hesitasse. Ele ergueu os olhos, que agora não brilhavam com ira — mas com um brilho que lembrava o espaço entre as estrelas. Quando falou, sua voz não era apenas dele: 
 
    — Em nome d’Aquele Que Não Pode Ser Nomeado... vocês foram vistos. 
 
    As palavras reverberaram na terra como um sino de mármore. Então a floresta se abriu — não por entre as árvores, mas entre os planos da realidade. 
 
    Duas formas surgiram. Ursas, mas não exatamente. Seus olhos eram buracos que sugavam a luz, seus corpos tremiam como reflexos numa água que não existe. Elas avançaram com lentidão ritual, como sacerdotisas de um culto antigo. E então veio a fome. 
 
    Gritos. Não apenas de dor — de reconhecimento. Os jovens viam, no momento da morte, algo que sempre souberam, mas jamais ousaram lembrar. E o terror que os consumiu era maior do que as garras ou os dentes. 
 
    Quando tudo cessou, a estrada estava silenciosa. Só o profeta restava, caminhando entre os corpos como uma sombra lançada por outra dimensão. 
 
    Ao longe, o céu girava ainda — como o olho de um deus que acabara de piscar. 
 
Conto: Odair José, Poeta Cacerense

domingo, 6 de abril de 2025

Quatro voltas para a eternidade

    Era um domingo de sol ameno, daquele tipo que parece ter sido encomendado só pra fazer a gente lembrar dele com carinho décadas depois. Fazia parte do encanto dos anos 90, uma época em que a gente corria mais descalço do que calçado, e onde a pista de terra batida da escola era o nosso estádio olímpico. 
 
    Lembro como se fosse hoje. A cidade toda parecia estar lá. A arquibancada improvisada de madeira estalava sob o peso da torcida — pais, mães, irmãos, tios e curiosos. Uns vendiam picolés de groselha, outros subiam em árvores pra ver melhor. Aquele tipo de aglomeração que só um evento importante trazia pra cidade: a final da corrida de revezamento 4 x 4. 
 
    A gente era só moleque, mas naquele dia... naquele dia, éramos lenda. 
 
    Nos chamavam de tudo quanto é apelido. Eu era o Pernão, por motivos óbvios — tinha as pernas mais compridas da escola e corria como um louco atrás do vento. O Pescoço era alto e magrelo, parecia um galho de coqueiro, mas tinha resistência de maratonista (e também não tinha pescoço). O Matador não tinha piedade: quando pegava o bastão, era como se a pista fosse dele e o tempo fosse inimigo. E o Piti, ah… o menorzinho do grupo, mas com um coração que parecia maior que todos nós juntos. Era rápido, valente e tinha uma explosão que deixava todo mundo de queixo caído. 
 
    A gente treinava escondido, no campinho de trás da escola, usando um cabo de vassoura cortado no meio como bastão. Tínhamos a nossa própria coreografia de passadas e gritos de incentivo. Ninguém dava muito por nós. Mas a gente sabia… sabíamos o que tínhamos. 
 
    Quando chegou a hora, fiquei com a primeira perna da corrida. As outras equipes estavam alinhadas. Os olhos do público, os gritos, o cheiro de barro seco misturado com pipoca… tudo pareceu sumir por um instante. Só ouvi o apito. E corri. 
 
    Corri como se fosse o último domingo da minha vida. 
 
    Senti o vento bater no rosto e o mundo passar em borrões. Entreguei o bastão pro Pescoço com o coração batendo na boca. Ele voou. Não corria — flutuava. Passou um, dois competidores, e já estávamos na frente. 
 
    O Matador gritou antes de pegar o bastão. Era a sua marca registrada, um rugido que gelava os adversários. Correu como quem foge do próprio passado. Firme, decidido, feroz. 
 
    E então veio o Piti. 
 
    O menorzinho da equipe, o mais desacreditado. Quando recebeu o bastão, a vantagem era pequena, e atrás vinha o time dos garotos da outra escola — os "favoritos", com seus tênis novos e uniforme passado a ferro. Mas o Piti não ligava pra isso. Ele correu como se carregasse os sonhos de todos nós nas mãos. 
 
    E talvez carregasse mesmo. 
 
    O último trecho foi uma eternidade. Eu lembro de gritar tanto que fiquei rouco por dois dias. Todo mundo na arquibancada de pé, gente pulando, jogando boné pro alto, gritando o nome do Piti como se fosse de jogador profissional. Ele cruzou a linha de chegada com o peito estufado e um sorriso que não cabia no rosto. 
 
    A vitória foi nossa. 
 
    Não teve pódio, nem medalha de ouro reluzente, mas aquilo… aquilo foi maior. A gente se abraçou, suados, ofegantes, quase sem acreditar. Choramos. Sim, choramos mesmo sendo “durões”. Era alegria demais pra guardar só no peito. 
 
    Hoje, sentado na varanda, com os joelhos estalando e os dias passando mais devagar, ainda escuto aqueles gritos. Ainda vejo o bastão voando de mão em mão, a poeira subindo, o sol iluminando nossos rostos jovens e sonhadores. 
 
    A corrida passou. Mas aquela vitória, meu amigo… aquela ficou. 
 
Conto: Odair José, Poeta Cacerense 
 
Obs. Em memória do nosso amigo Piti (In Memoriam)

sábado, 5 de abril de 2025

A sombra de Caim

    Caim caminhava entre as vinhas ressecadas, os dedos crispados de terra e suor. O céu não respondia, e sua oferta — fruto de seu trabalho, sua devoção — permanecia no altar como pedra rejeitada. Abel, com seu olhar sereno e o cordeiro recém sacrificado, parecia flutuar entre os favores divinos.
 
    Ele não entendia. Por que o Eterno preferia o sangue ao grão? Por que o esforço de suas mãos era menos digno do que o suspiro de um animal? Caim conhecia o relato do Éden — a escolha maldita, a queda, a espada flamejante. Sabia que viver era já uma consequência. Mas ali, naquela terra marcada pela expulsão, era preciso seguir escolhendo. E cada escolha era uma cruz. 
 
    No silêncio do campo, a voz ecoou dentro dele: — "Se procederes bem, não é certo que serás aceito? Mas se não procederes bem, o pecado jaz à porta, e o desejo dele será contra ti, mas cumpre a ti dominá-lo." 
 
    Caim caiu de joelhos. Era essa a angústia: o saber e o não querer. A liberdade que fere, a responsabilidade de ser humano. Sartre viria milênios depois chamá-la de "condenação à liberdade". Mas Caim já conhecia essa prisão sem grades: escolher é carregar o peso de todas as consequências possíveis. 
 
    O campo se estreitou. Abel vinha ao longe, sorrindo, sem culpa. E Caim sentiu a sombra crescer dentro de si. Não era o ódio que o movia, mas a dor de ser visto por um Deus que não o via. O gesto que seguiu foi menos fúria que desespero — um clamor sem palavras, um grito contra o silêncio divino. 
 
    E quando o sangue tocou a terra, Caim finalmente ouviu. Mas era tarde. 
 
    O solo, agora maldito, não gritaria apenas por justiça, mas por todas as escolhas que virão depois — e por todos os homens que, como Caim, teriam que viver com elas. 
 
Conto: Odair José, Poeta Cacerense