Eu não estava particularmente animado nessa manhã. Fazia frio. E eu não gosto muito de frio. A programação do curso de formação para professores poderia ser mais do mesmo: oficinas sobre metodologias ativas, planejamento, ensino híbrido… poderia, mas não foi.
A sala era conhecida, a mesma que trabalho História e Filosofia com meus alunos do Primeiro Ano. Lá fora o sol ameaçava espantar o frio e amenizar o meu tédio momentâneo. Quando a moça entrou, carregando uma cesta de plástico, imaginei que teria algo de diferente nesta manhã. O temor das dinâmicas que nos fazem sair da zona de conforto também faz parte dos meus pesadelos. No entanto, meus temores não se confirmaram. Não havia palco. Nem microfone. Ela se apresentou apenas como Ana. Com voz suave chamou a atenção.
Ana tirou da cesta um punhado de objetos, vidros ou plásticos com sementes de raízes, flores secas. “Essas são minhas tintas”, disse com um sorriso. Começou a falar de sua paixão pela descoberta dos conhecimentos ancestrais das tintas extraídas das plantas. Vinda do interior de Mato Grosso do Sul, que tingia os panos com pau-brasil, jenipapo e outras plantas (inclusive mamona) que não consegui memorizar. Enquanto falava, ela demonstrou a transformação das cores através de pequenos experimentos.
Eu prendi a respiração.
Ela explicava como cada cor nascia do atrito entre planta e água, entre fogo e tempo. Mostrou como um tom amarelado surgia do pequi que, como ela disse, uns amam e outros odeiam (não existe meio termo), eu mesmo odeio, como a semente do urucum precisava ser aquecida com óleo para se soltar, como a folha do repolho roxo podia virar azul, rosa ou roxa dependendo do pH. Não era só química — era encantamento. Era ciência com alma.
Fomos convidados a experimentar. Misturamos, pingamos, vimos as cores ganharem tons. Meus colegas, tão acostumados com quadro branco e marcador permanente, estavam maravilhados, bastante admirados, sorrindo como crianças quando saem para o recreio.
Ana nos contava que cada cor carregava uma história. A cor da casca do pau-brasil. O violeta do jenipapo vinha da fruta verde, mas escurecia em contato com a pele como um segredo revelado só com o tempo. “O saber da terra não está nos livros, está nas mãos de quem vive nela”, ela disse. Falando de Manoel de Barros ou de Ailton Krenak, ou dos dois.
Eu a escutava com um nó na garganta. Percebi, ali, que meus alunos sabiam o nome de todos os planetas, mas não reconheciam o cheiro da folha de mamona. Sabiam as cores da Revolução Francesa e da Bandeira dos Estados Unidos, mas não sabiam que o açafrão que coloria o arroz da avó podia virar tinta. Aquela moça, com sua cesta simples e suas mãos manchadas, me ensinava mais sobre educação do que todos os manuais pedagógicos que já li.
Quando a palestra terminou, ela foi aplaudida de imediato. Antes mesmo de terminar a sua palestra e, depois dela falar tanto nos poetas, eu já estava arquitetando esse texto e autografando um dos meus livros para ela. Conhecimento se transmite dessa forma.
Guardei comigo mais essa experiência, mais esse aprendizado. Com certeza mais um lembrete: há saberes que não cabem no quadro negro (ou branco). Há cores que só se revelam quando nos abrimos ao invisível.
Nesse dia, numa pequena sala de aula, descobri que ensinar também é colher raízes. E que toda cor tem sua raiz em algum segredo da terra.
Crônica: Odair José, Poeta Cacerense
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