sexta-feira, 23 de maio de 2025

A velha rezadeira

    O sol declinava lento sobre o Rio Paraguai, tingindo as águas de cobre e silêncio. D. Nair, velha rezadeira de Cáceres, sentava-se sob o ingazeiro com um terço nas mãos e os pés mergulhados na correnteza morna. Diziam que ela conversava com os mortos, mas naquela tarde ela apenas ouvia. 
 
    O rio sussurrava nomes antigos, lembranças de um tempo em que barcos a vapor cortavam as águas como fantasmas. Uma garça pousou perto, imóvel como se também rezasse. Do outro lado, um menino apareceu na margem — era Vicente, seu neto, morto há três anos numa enchente. 
 
    — Vó, a senhora ainda espera? — ele perguntou, sem mexer os lábios. 
 
    D. Nair não respondeu. Apenas fechou os olhos e sorriu, deixando o terço escorregar da mão. O rio o levou. E levou também a velha, leve como folha de mangueira, dissolvida no abraço das águas. 
 
    Quando os vizinhos chegaram, só encontraram pegadas descalças na areia. E um rastro de orações pairando no ar. 
 
Conto: Odair José, Poeta Cacerense

domingo, 18 de maio de 2025

Os passos lentos de um domingo qualquer

    O sol ainda hesitava no céu quando Álvaro empurrou a porta de casa. A manhã de domingo se estendia diante dele como um lençol amarrotado de silêncio e brisa. A rua estava quase vazia, exceto por um gato dormindo sobre o capô de um carro e um senhor varrendo folhas secas na calçada oposta. 
 
    Álvaro enfiou as mãos nos bolsos do moletom e começou a andar sem rumo certo. O bairro parecia suspenso no tempo, como se o mundo inteiro tivesse tirado folga para respirar. Seus passos ecoavam baixos no asfalto ainda frio. 
 
    Pensava em como os domingos carregavam uma espécie de melancolia branda. Não era tristeza, exatamente. Era mais como uma pausa, um espaço entre as engrenagens da semana. Uma trégua. Caminhar era sua forma de entender esse intervalo. 
 
    Lembrou-se do pai, que costumava fazer o mesmo: sair cedo, caminhar devagar e voltar com o pão fresco e os olhos distantes. Quando criança, Álvaro achava que ele só queria pão. Agora sabia que havia mais — havia silêncio, havia pensamento. 
 
    Na praça, as folhas caídas desenhavam espirais nos cantos. Álvaro se sentou num banco, observando um casal de velhos caminhando de mãos dadas. Eram lentos, mas firmes. Havia algo de bonito naquela lentidão compartilhada. Algo que falava de tempo, de escolhas, de constância. 
 
    Olhou para as próprias mãos. Não estavam tão velhas, mas também não eram as mesmas de antes. Tantas coisas haviam mudado, e tão poucas ele realmente escolhera. Era como se a vida tivesse passado por ele, e não o contrário. 
 
    Um cachorro latiu ao longe. O sino de uma igreja badalou sete vezes. Álvaro respirou fundo. 
 
    Talvez a vida fosse isso: acordar, andar um pouco, sentir o vento e lembrar que ainda se está aqui. Que se está, de algum modo, vivo. E isso, naquele instante, era o bastante. 
 
    Levantou-se e seguiu o caminho de volta. O pão podia esperar. O tempo, não. 
 
Conto: Odair José, Poeta Cacerense

quinta-feira, 15 de maio de 2025

2073 - Em Breve!

 
Uma excursão escolar. 
Uma caverna misteriosa. 
Um salto no tempo — direto para o caos. 
 
    Em 2025, sete alunos e um professor entram na Caverna do Jabuti. Ao saírem, descobrem que estão em 2073, em um mundo devastado pela ambição humana. Entre mutações, segredos e o surgimento de uma força chamada Véu, eles precisam sobreviver… ou se tornar parte do próprio tempo. 
 
2073! 
 
Em Breve!

sábado, 3 de maio de 2025

Quando o céu se partiu ao meio

    Dizem que, numa noite de calor e silêncios pesados, o céu sobre o Pantanal se partiu ao meio. 
 
    As estrelas tremularam como lamparinas ao vento, e da terra subiu um lamento antigo, tão antigo quanto o barro das margens do rio Paraguai. Os mais velhos dizem que era o espírito de um guardião esquecido, traído por aqueles que juraram protegê-lo. Outros dizem que era só o som das árvores chorando, anunciando o retorno do Monstro. 
 
    Na Vila Maria do Paraguai, as janelas foram fechadas antes da última luz do dia. As galinhas se calaram no poleiro, os cães choraram baixo e até o gado se recolheu, como se soubesse que algo se arrastava pelas águas. 
 
    Naquela mesma noite, um menino sonhou com prata. Não com moedas, nem com medalhas, mas com um escudo enterrado em lama e luz. Ele acordou suando, o peito doendo como se tivesse corrido léguas. Era Samuel — filho da terra, neto das águas. 
 
    E a partir daquele sonho, o mundo nunca mais seria o mesmo. 
 
    Enquanto isso, em uma casa alta de madeira escura, com janelas voltadas para o rio, Elisa fitava o horizonte com os olhos de quem pressente o vento mudar. Seus dedos tocavam as grades da sacada como se quisessem abrir um portão invisível. E, lá dentro, ela sabia: algo vinha para buscá-la, algo que nem o pai com suas armas, nem os homens com seus mapas, poderiam deter. 
 
    Na mata fechada, o Monstro acordou. 
 
    E o destino começou a caminhar, pisando leve, como quem não quer acordar os vivos. 
 
Conto: Odair José, Poeta Cacerense 
 
Obs. (EM BREVE - O Cavaleiro com Escudo de Prata que enfrentou o Monstro no Pantanal)

sexta-feira, 2 de maio de 2025

Quando o urgente atropela o importante

    Outro dia, percebi que passei a manhã inteira apagando incêndios. Não incêndios de verdade, claro — eram mensagens urgentes, tarefas pendentes, compromissos que surgem do nada e já chegam com a sirene ligada. Uma correria sem trégua. Resolvi uma coisa, veio outra. Respirei fundo e já tinha mais duas batendo à porta. 
 
    Quando me dei conta, o dia tinha passado. E o que era importante mesmo — aquela ligação que eu queria fazer para o meu pai, o capítulo do livro que queria escrever, a caminhada que meu corpo pedia há dias — ficou para depois. De novo. 
 
    É curioso como o urgente sempre parece mais importante do que realmente é. Ele tem esse jeito de invadir o espaço, bater o pé e exigir prioridade. Já o importante… o importante é tímido. Fica ali, no canto da sala, esperando a sua vez, como se não quisesse incomodar. 
 
    Mas o curioso é que, no fim das contas, o que mais pesa não é o que deixamos de resolver — é o que deixamos de viver. Não é o e-mail não respondido que fica martelando na cabeça à noite, é a conversa adiada, o tempo perdido com quem nos faz bem, os projetos que nunca saem da gaveta porque “hoje não dá”. 
 
    Talvez a gente precise reaprender a diferenciar barulho de valor. Nem tudo que apita merece nossa atenção imediata. Nem tudo que se cala pode esperar. 
 
    A vida não vai avisar quando o importante estiver indo embora. Ela simplesmente fecha a porta. 
 
Crônica: Odair José, Poeta Cacerense

quinta-feira, 1 de maio de 2025

2073 - O outro lado

    O som. 
 
    Não foi uma explosão. Nem um trovão. Foi algo mais profundo. Como um estalo no coração da realidade. 
 
    As luzes piscaram. O ar ficou denso. O chão pareceu tremer, mas ninguém caiu. 
 
    E quando saíram do outro lado da caverna... 
 
    ... o céu não era mais o mesmo. 
 
    A vegetação estava cinza. O vento queimava a pele. Não havia sinal da van. Ou dos outros grupos. 
 
    Eles haviam atravessado. 
 
    Mas para onde? 
 
    Ou talvez, para quando? 
 
Em Breve! 
 
2073 - Ecos da Caverna 
(Odair José da Silva)

2073 - O início do fim

    “A primeira rachadura não foi no tempo, foi nos olhos de quem viu demais.” 
 
    Cáceres, MT. 
    5 de maio de 2025. 
    6h37 da manhã. 
 
    O céu ainda era céu. 
 
    A van da escola particular cortava a BR-364 rumo a Curvelândia, entre música baixa, vozes sonolentas e o chiado dos pneus na estrada de asfalto. 
 
    O professor Elias estava ansioso. 
 
    Não pela caverna — já conhecia aquele lugar de excursões passadas — mas pelos alunos. Aquele grupo tinha algo diferente. Como se cada um carregasse um fio de uma tapeçaria maior do que eles podiam imaginar...
 
Em breve! 
 
2073 - Ecos da Caverna
Odair José da Silva