Era um tempo em que os ipês floriam antes do previsto, como se a própria natureza estivesse inquieta. Cáceres dormia sob o calor pesado de setembro, quando se espalhou a notícia: o vereador Isidoro Martins sumira.
Homem miúdo, mas de fala mansa e olhos que pareciam sempre medir as palavras dos outros, Isidoro não era exatamente popular, mas era temido. Sabia demais. Sobre contratos, sobre desvios, sobre gente enterrando osso onde ninguém mais lembrava de procurar. E tinha um diário. Dizia-se que nele estavam guardadas verdades que jamais subiriam à tribuna.
Naquela semana, a Câmara Municipal se encheu de silêncios. Os colegas—alguns aliados, outros inimigos, todos cúmplices em alguma medida—passaram a andar com passos leves, como se cada estalo no assoalho antigo pudesse acordar fantasmas. O prefeito, tenso, convocou uma coletiva onde não disse nada. A população, por sua vez, fingia desinteresse, como quem já se acostumou a engolir mistérios junto com a poeira da seca.
Mas havia alguém que queria saber a verdade.
Dona Belmira, a bibliotecária aposentada, mulher de poucas palavras e muitos cadernos, começou a investigar por conta própria. Ela conhecia Isidoro desde pequeno, e jurava que ele havia mudado nos últimos meses. Falava de ética como se fosse uma coisa possível. Andava pela cidade anotando nomes, lugares, placas. Como se se preparasse para algo.
Foi Belmira quem encontrou o diário. Estava escondido atrás da imagem de São Miguel Arcanjo, no altar da capela abandonada à beira do rio Paraguai. Folheou as páginas com dedos trêmulos. Ali, Isidoro escrevera tudo: acordos ilegais, caixas de campanha enterradas em galpões de fazendas, negociações com grileiros, desaparecimentos camuflados por relatórios forjados.
Mas havia também algo estranho nas últimas páginas. Um trecho repetido diversas vezes, como um mantra:
“O poder não corrompe. Ele revela.
E aquilo que revela às vezes enlouquece quem vê.”
Nessa mesma noite, Belmira levou o diário ao jornal local. Mas o redator-chefe, velho amigo de infância de alguns dos citados, recusou-se a publicar. Na manhã seguinte, a casa de Belmira foi arrombada. Ela, no entanto, já tinha deixado cópias em três envelopes, entregues a alunos da escola técnica onde dava aulas voluntárias.
O conteúdo explodiu nas redes, foi parar em blogs, depois em rádios. Mas ninguém foi preso. Os acusados, um a um, apareceram na televisão dizendo que tudo era invenção, "um golpe de oportunistas", "fakenews". Isidoro nunca mais foi visto. Alguns dizem que fugiu para a Bolívia. Outros juram tê-lo visto caminhando pelo bairro Cavalhada ao entardecer, com um olhar que já não era deste mundo.
Dona Belmira?
Passou a ser tratada como uma velha louca.
Mas ela continua anotando. Observando.
E diz uma coisa para quem ainda a escuta:
“Nem toda loucura é delírio.
Às vezes, é só o que resta para quem viu demais.”
Conto: Odair José, Poeta Cacerense
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