Era uma tarde abafada de setembro, daquelas em que o céu de Cáceres fica parado, como se observasse tudo com olhos antigos. A Unemat fervilhava com os estandes do evento acadêmico. Havia exposições, debates, oficinas. No pátio central, um velho pé de figueira estendia suas raízes como braços de um deus silencioso, oferecendo sombra e refúgio.
Lucas havia ido por obrigação. Estudante de Medicina, filho de uma família tradicional da capital, tinha o costume de não se misturar com os outros cursos — “besteira de humanas”, seu pai diria. Mas ali estava ele, esperando a palestra de um professor cubano sobre saúde pública. Enquanto isso, distraía-se com o celular, até ouvir uma voz firme e doce dizendo:
— Pode tirar os fones. Aqui embaixo da figueira é território de escuta.
Ele olhou, confuso. Diante dele, uma jovem de tranças longas, olhos atentos e sorriso atrevido. Trazia livros nos braços e vestia uma camiseta com os dizeres: “Educar é um ato de amor e coragem.”
— Desculpa? — ele perguntou, tirando um fone do ouvido.
— Estou só brincando. É que essa figueira é um marco pros calouros da Pedagogia. A gente se reúne aqui desde sempre. Costuma ser um bom lugar pra ouvir histórias, sabe?
Lucas sorriu, meio sem jeito. Algo na presença dela desarmava seu tédio.
— Sou o Lucas.
— Eu sou a Ana Clara. Terceiro semestre de Pedagogia. E você?
— Medicina. Primeiro ano.
— Hum... futuro doutor. Já salvou alguma vida ou ainda tá apanhando da bioquímica?
Ele riu, relaxando pela primeira vez em dias.
— Apanhando, com certeza. Mas e você? Já alfabetizou o mundo?
— Ainda não. Mas aprendi que a escuta vem antes da letra. E que o amor ensina mais do que o medo.
Ficaram conversando por horas, entre piadas e confissões. Ana Clara falava com paixão sobre Paulo Freire, sobre sua mãe empregada doméstica que sempre sonhou que a filha tivesse “um nome na porta”. Lucas escutava, encantado. Pela primeira vez, alguém o fazia sentir pequeno de um jeito bom — não diminuído, mas ampliado.
Ele não contou de imediato que vinha de uma família onde o racismo era sussurrado em jantares elegantes. Nem que sua mãe torceria o nariz se o visse ali, sob a figueira, rindo com uma garota negra e cotista.
Mas voltou no dia seguinte.
E no outro.
Sempre sob o mesmo figueiral.
Ana Clara começou a escrever poemas sobre encontros impossíveis que, mesmo assim, aconteciam. Lucas começou a se interessar por saúde coletiva, por políticas públicas, por coisas que antes ignorava. Ela o ensinava a olhar. Ele aprendia a desaprender.
Foi num fim de tarde, quando o sol desenhava rendas no chão através das folhas da figueira, que ele a beijou pela primeira vez. Sem pressa, sem certeza. Apenas o toque de dois mundos que, por um instante, se tornavam um só.
O romance deles não foi fácil. Havia olhares atravessados nos corredores. Amizades desfeitas. Comentários maldosos disfarçados de brincadeira. Mas também havia cartas, cafés compartilhados, livros trocados e uma certeza silenciosa que crescia como raiz: algo ali era verdadeiro.
Certa vez, Ana Clara lhe disse:
— Amar você é como plantar semente em solo que disseram ser estéril. Mas olha... — e apontou para o broto de manjericão que cultivavam juntos — ...a gente desafia até a terra quando cuida com amor.
Anos depois, quando Lucas se formou e escolheu trabalhar no interior como médico da família, Ana Clara já lecionava numa escola pública e seguia com os pés firmes no chão e os olhos voltados para os sonhos.
O pé de figueira ainda estava lá. E sob sua sombra, dois jovens que ousaram amar além dos limites impostos — não por ingenuidade, mas por coragem — deixaram raízes que o tempo não apaga.
E a figueira escutava, como sempre, sem dizer uma palavra.
Conto: Odair José, Poeta Cacerense