terça-feira, 11 de novembro de 2025

Aforismos sobre leitura

    1. Ler é atravessar o espelho sem quebrá-lo. É despir o mundo de suas leis e vestir o impossível. 
 
    2. Abro um livro e o tempo se curva. A realidade, tímida, espera do lado de fora da página. 
 
    3. Cada palavra é uma porta. Cada frase, uma travessia secreta — e ao final do parágrafo, já não sou o mesmo que começou a ler. 
 
    4. Ler é sonhar com os olhos acordados, é saborear o delírio sem precisar dormir. 
 
    5. No silêncio das letras, o mundo perde o peso. E eu, leve, fujo para onde ninguém me encontra — nem mesmo eu. 
 
    6. O livro é uma ferida que cicatriza por dentro. Quanto mais leio, mais me curo do real. 
 
    7. A leitura é um exílio voluntário. Mas lá, no país das páginas, sou rei, ou sombra, conforme o capítulo. 
 
Aforismos: Odair José, Poeta Cacerense

Ponto de partida

 
    O que pensamos e fazemos hoje cria o nosso amanhã. Cada ideia, emoção e escolha molda o caminho que iremos percorrer. A felicidade não está no futuro — ela começa agora, nos pensamentos que alimentamos. Se hoje cultivamos confiança, gratidão e amor, o amanhã refletirá essa mesma luz. O presente é o ponto de partida de tudo o que seremos. 
 
Pensamento: Odair José, Poeta Cacerense

sábado, 8 de novembro de 2025

As 7 pragas na Praça Barão (Parte 2) - As abelhas

    A semana passou como uma sombra que finge ser luz. Na segunda-feira, a prefeitura anunciou que tudo estava sob controle. “Um surto natural”, disseram. “Fenômeno isolado.” Mas quem passou pela Praça Barão naquela manhã sentiu o ar diferente — como se o vento evitasse tocar o chão. 
 
    Os garis lavaram o piso com jatos de água e cloro. O cheiro de formigas queimadas misturava-se ao perfume das árvores e à lembrança recente dos gritos. Mesmo assim, na sexta-feira seguinte, os bares voltaram a abrir. Porque o medo, quando não tem explicação, logo vira costume. 
 
    Entre as mesas, sentava-se Dra. Laura Nogueira, bióloga da universidade local. Ela observava o movimento enquanto tomava uma cerveja morna. Estava ali por curiosidade científica — ou talvez por inquietação. As amostras das formigas que recolhera não faziam sentido algum: espécies de regiões distintas, impossíveis de coexistirem, agindo como um só organismo. 
 
    Mas o que mais a perturbava era outra coisa. Nas lâminas de microscópio, entre os fragmentos, havia uma substância escura, viscosa — como se fosse sangue fossilizado. 
 
    Laura olhava para o chão da praça e imaginava raízes de carne, veias antigas pulsando sob os paralelepípedos. Ela não sabia explicar, mas sentia que aquilo não era apenas biologia. Era memória. 
 
    Pouco antes do pôr do sol, o padre Augusto se aproximou dela. Um homem alto, olhar cansado, conhecido pelos sermões sobre pecado e esquecimento. 
 
    — A senhora acredita em coincidências, doutora? — perguntou, com a voz rouca. 
 
    — Em ciência, padre, coincidência é apenas o nome que damos ao que ainda não entendemos. 
 
    Ele assentiu. 
 
    — Então a senhora entenderá logo. A segunda praga está a caminho. 
 
    Laura riu, mas o riso morreu antes de nascer. O ar, de repente, ficou espesso. O vento cessou. E um zumbido começou a crescer, distante, metálico — como se o céu estivesse se abrindo. 
 
    De repente, uma nuvem negra cobriu o entardecer. Abelhas. Milhares. Talvez milhões. 
 
    Elas desciam como uma chuva viva, grudando em cabelos, roupas, rostos. O som era ensurdecedor. As pessoas corriam, tropeçavam, batiam nas portas dos bares. O zumbido se tornava grito. 
 
    O padre agarrou Laura pelo braço e a arrastou para dentro da igreja em frente à praça. Fechou as portas. As janelas tremeram sob o impacto das abelhas. De fora, vinham gritos, orações, o som de copos quebrando e motores tentando fugir. 
 
    — Padre, o que é isso? — ela perguntou, apavorada. 
 
    Ele olhou para o crucifixo e respondeu baixo: 
 
    — No Êxodo, as pragas não vinham do céu nem da terra. Vinham da culpa dos homens. 
 
    Lá fora, o céu parecia arder. As abelhas atacavam sem razão, cegas, furiosas, e quando finalmente o vento as dispersou, a praça era um deserto de corpos e asas partidas. 
 
    Mais uma sexta-feira. Mais um selo rompido. 
 
    Na manhã seguinte, os jornais chamavam de “tragédia natural”. Mas Laura, diante de seu microscópio, viu algo novo nas asas das abelhas mortas: símbolos minúsculos, como inscrições queimadas na quitina. Letreiros invisíveis à vista comum. 
 
    Ela anotou no caderno: “Não são apenas insetos. São mensageiros. E o que querem transmitir é mais antigo do que nós.” 
 
    Enquanto isso, no coreto vazio, Seu Adão deixava flores frescas sobre o chão rachado e murmurava: 
 
    — Duas já foram. Cinco ainda dormem. 
 
Continua... 
 
Conto: Odair José, Poeta Cacerense

domingo, 2 de novembro de 2025

As 7 pragas na Praça Barão (Parte 1) - As formigas

    A sexta-feira começou como todas as outras. O calor de Cáceres grudava na pele, o cheiro do rio misturava-se ao da carne nas porções, e a Praça Barão era o ponto de encontro inevitável — o coração pulsante de uma cidade que fingia estar viva. 
 
    Pais empurravam carrinhos de bebê, adolescentes tiravam fotos em frente à fonte, e os garçons corriam entre mesas e risadas. Mas havia algo diferente no ar — um zumbido surdo, como se o chão murmurasse. 
 
    O primeiro a notar foi Henrique, um menino de oito anos, curioso e inquieto, de olhos atentos a tudo que se movia. Ele brincava perto do cais, empurrando um carrinho de brinquedo quando viu algo subir pelo parapeito de pedra. 
 
    Formigas. Pequenas, pretas, brilhantes como carvão molhado. 
    — Pai, olha! — disse ele, puxando a barra da calça do homem. — Elas estão vindo da água! 
 
    O pai riu. 
    — Da água, filho? Formiga não mora em rio. 
    Mas o menino insistiu. E quando os dois olharam de novo, o chão parecia respirar. 
 
    De cada fenda, de cada rachadura entre os paralelepípedos, saíam dezenas, centenas… milhares de formigas, formando trilhas negras que se espalhavam em direção às mesas, às barracas, às pernas das pessoas. 
 
    Em poucos minutos, a Praça Barão virou um tabuleiro vivo. 
 
    As pessoas primeiro acharam engraçado, depois incômodo — até que as primeiras picadas começaram. Um homem tropeçou, gritando. Uma mulher caiu, arranhando os braços, enquanto as formigas subiam por debaixo do vestido. Alguém tentou varrê-las com um pano. Outro jogou água. Nada adiantava. 
 
    Elas avançavam, coordenadas, como um exército invisível seguindo ordens. E então começaram os gritos. 
 
    Alguns caíram no chão, tremendo, os olhos revirando — as picadas se tornavam queimaduras, e a pele inchava de forma grotesca. O caos tomou conta da noite. Os bares fecharam às pressas, e a praça virou cenário de fuga. 
 
    Henrique foi arrastado pela mãe, chorando, enquanto via as formigas cobrirem os bancos, o chão, os sapatos, os corpos. O som das sirenes chegou tarde demais. 
 
    Mais tarde, no hospital, uma médica comentou baixinho com uma enfermeira: 
    — Elas não são comuns. São de espécies diferentes, todas juntas… isso não acontece na natureza. 
    A enfermeira perguntou: 
    — Então o que é isso? 
    A médica olhou pela janela, o céu escuro, e respondeu: 
    — Talvez a natureza tenha lembrado do que a gente esqueceu. 
 
    Na manhã seguinte, a praça foi isolada. As televisões falavam em “ataque atípico de insetos”. Mas, perto do cais, Seu Adão observava tudo de longe, encostado em sua bengala. A fenda no chão estava maior — um rasgo fino, escuro, onde a terra parecia pulsar. Ele sorriu com tristeza e murmurou: 
    — A primeira já veio. Faltam seis. 
 
Continua... 
 
Conto: Odair José, Poeta Cacerense

sexta-feira, 31 de outubro de 2025

O coração do impossível

    O devaneio nasce quando o silêncio respira e o mundo, por um instante, suspende sua ordem. É nesse intervalo que o desejo desperta, úmido e febril, buscando forma nas dobras da imaginação. Tudo o que foi contido começa a murmurar — lembranças, fantasias, promessas que nunca chegaram a ser palavras. O pensamento se curva, então, ao prazer do próprio delírio. 
 
    Entre a luz e o esquecimento, o devaneio ergue seu jardim secreto. As flores são desejos antigos, guardados como relíquias de uma vida sonhada. As sombras, tentações que nunca morreram de todo, apenas aprenderam a disfarçar-se de pensamento. Cada pétala é uma lembrança do que não se viveu; cada espinho, a lembrança do que se ousou desejar. 
 
    E assim o devaneio cresce, alimentado pelo perfume do impossível. Nele o corpo recorda o que a mente tentou esquecer — e o espírito, cansado da razão, se deita no colo do talvez. Não é fuga: é retorno. Retorno à primeira vertigem, ao instante em que querer era mais puro que possuir, e o proibido ainda não tinha nome. 
 
    No fundo, o devaneio é um espelho brumoso onde nos contemplamos sem disfarces. Ali se acumulam nossos desejos, nossas tentações, nossas pequenas mortes e renascimentos. E quando despertamos dele, um vestígio permanece: um brilho nos olhos, como se tivéssemos tocado — por um instante — o coração invisível do que jamais existiu. 
 
Pensamentos: Odair José, POeta Cacerense

terça-feira, 14 de outubro de 2025

O velho professor de História

    Eu me lembro bem daquele tempo — um tempo em que o sol parecia mais pesado, como se cada raio me empurrasse para dentro de mim mesmo. Eu tinha uns doze anos, talvez treze. A escola já não me dizia muita coisa. A casa estava sempre vazia. Minha mãe não estava lá e meu pai vivia mais no trabalho do que em casa. Apenas meu irmão menor me fazia companhia quando não estávamos brigados por alguma besteira. E eu, perdido no meio disso tudo, comecei a faltar às aulas. Primeiro um dia, depois outro. Até que parei de vez. 
 
    Meus colegas diziam que eu estava “cansado”, mas no fundo eu estava era fugindo. Do barulho, da saudade, do abandono. Eu acordava tarde, sentava debaixo da mangueira no quintal e ficava olhando as folhas se mexerem, como se o vento fosse o único que ainda me entendesse. Vez ou outra eu e meu irmão brincava de jogar bola. A bola, quase sempre, era feita de meias. 
 
    Foi numa dessas manhãs que ouvi um barulho diferente: uma bicicleta velha, freando em frente ao portão. Quando olhei, vi o professor Luiz descendo, com aquele jeito sério que ele tinha. Ele era o diretor da escola, e também dava aula de História — a única matéria que eu realmente gostava. 
 
    — Bom dia, rapaz — ele disse, encostando a bicicleta. — Sua professora me disse que você anda sumido. 
 
    Fiquei em silêncio. Não sabia o que dizer. 
 
    Ele pediu licença e veio se sentar comigo, ali mesmo, sob a mangueira. Ficamos um tempo calados, ouvindo o som dos galhos e o canto distante de um galo. Depois, ele falou: 
 
    — Sabe, eu também já pensei em largar tudo. Quando eu era novo, achava que estudar não servia para nada. Mas foi a História que me segurou. Descobrir que outros, antes de mim, também se perderam e encontraram o caminho... isso me deu força. 
 
    Olhei pra ele sem entender muito. 
 
    — A vida, meu rapaz — continuou —, é feita de idas e voltas. Às vezes a gente se perde para descobrir quem é. Mas se a gente não volta, o mundo continua andando sem nós. E, quando você resolve voltar, talvez já seja tarde. 
 
    Aquelas palavras ficaram presas em mim. Ele se levantou, enxugou a testa de suor e disse: 
 
    — Amanhã te espero na escola. Não precisa dizer nada agora. Só apareça. 
 
    E foi embora, pedalando devagar, deixando um rastro de poeira na rua de chão. 
 
    Naquela noite, não consegui dormir direito. Fiquei pensando em como ele podia ter tirado uma manhã para vir até ali, falar comigo. Ninguém fazia isso. No dia seguinte, acordei cedo, lavei o rosto e vesti a camisa da escola. Caminhei devagar até o portão, e pela primeira vez em muito tempo, senti vontade de continuar andando. 
 
    Voltei para a sala de aula. Os colegas me olharam como se eu fosse um fantasma. O professor Luiz apenas sorriu e me entregou um caderno novo. 
 
    — Escreva a sua própria história — ele disse. 
 
    Anos se passaram. Hoje, sou eu quem entra nas salas, quem observa nos olhos inquietos dos alunos aquele mesmo brilho que eu um dia perdi. Dou aulas de História — a mesma disciplina que me salvou — e, às vezes, quando um aluno some por uns dias, eu fico pensando se não precisa de algum tipo de ajuda. E, de alguma forma, tento ajudar.
 
    Sempre tem uma mangueira esperando. Sempre tem alguém precisando ouvir que ainda é tempo de voltar. Sempre é tempo de construir a própria história.
 
Conto: Odair José, Poeta Cacerense

domingo, 12 de outubro de 2025

O espelho que mentia em silêncio

    Ele despertou no fim de uma tarde imóvel. A luz atravessava a janela como uma lâmina cansada, cortando o ar em fragmentos de ouro morto. Diante dele, o espelho. Velho, manchado, quase vivo. 
 
    A princípio, viu-se como sempre — rosto, rugas, o cansaço das horas. Mas havia algo além. Um brilho no olhar que não era dele, um reflexo que o observava de volta, como se o tempo o espreitasse por dentro. 
 
    Aproximou-se. Os olhos que o fitavam pareciam carregar séculos, como se já tivessem visto nascer e morrer todas as mentiras. E então compreendeu: aqueles olhos eram os seus — apenas mais antigos, mais lúcidos, mais tristes. 
 
    O espelho não mentia. Era ele quem acreditava na mentira do tempo, quem vestira o disfarce dos dias para não encarar o próprio vazio. Ali, diante de si, viu a verdade que o tempo oculta: não há envelhecimento, apenas esquecimento. Não há futuro, apenas repetição. O tempo não anda — ele gira, e nos arrasta em seu engano. 
 
    Quando saiu, o espelho permaneceu em silêncio, como se soubesse que logo outro viria buscar nele a mesma ilusão. E os olhos do homem, agora abertos demais, já não sabiam se viam o mundo, ou se apenas o lembravam. 
 
Conto: Odair José, Poeta Cacerense

domingo, 21 de setembro de 2025

O Pássaro do Coração Silencioso

    Havia um homem que, desde jovem, trazia no peito uma pequena gaiola invisível. Dentro dela vivia um pássaro pálido, de asas frágeis como véus de vidro. O homem o alimentava todos os dias, não com sementes ou água, mas com pensamentos nunca ditos, com desejos que jamais ousaram atravessar os lábios. 
 
    O pássaro crescia daquilo que não podia nascer — sorrisos engolidos, olhares desviados, cartas queimadas antes de escritas. E, embora suas asas jamais se movessem, ele cantava. Seu canto não era doce, mas profundo, como um eco vindo de uma caverna subterrânea. Era o som de um amor que ninguém jamais conheceria. 
 
    Com o passar dos anos, o homem percebeu que o pássaro nunca voaria. Preso àquela prisão secreta, sua existência se resumia ao lamento eterno. Mas o homem também percebeu outra coisa: o canto do pássaro atravessava a escuridão do tempo, como se fosse indestrutível. 
 
    Assim, ele compreendeu a maldição: amar em segredo era nutrir um pássaro que jamais conheceria o céu, mas cujo canto sobreviveria a todas as coisas — ao silêncio, à morte, ao esquecimento. 
 
    E o homem partiu deste mundo com o peito vazio de asas, mas repleto de ecos. 
 
    E dizem que, se à noite você encostar o ouvido no silêncio mais profundo, ainda poderá ouvir esse pássaro cantar. 
 
Fábula: Odair José, Poeta Cacerense

sábado, 13 de setembro de 2025

É ruim ficar sozinho?

    Estar tão sozinho é como caminhar por um deserto sem horizonte, onde o vento não traz notícias e cada passo é apenas o eco de si mesmo. No início, há medo — medo do vazio, da ausência, do silêncio que se alonga como um corredor infinito. Mas, à medida que a solidão se adensa, algo muda: o vazio deixa de ser ameaça e começa a ser espelho. Descobre-se que o silêncio não é oco, mas cheio — cheio de perguntas, de memórias, de vozes antigas que sempre estiveram abafadas pelo ruído do mundo. 
 
    É então que a solidão se torna revelação. A ausência dos outros desvela a presença de si. No escuro, quando nada resta além da própria respiração, percebe-se que o coração pulsa como um farol. Descobre-se que a alma não é feita de fragmentos alheios, mas de uma inteireza que só se mostra na solitude. Encontrar-se a si mesmo não é uma conquista imediata, mas um processo doloroso, como despir-se diante de um espelho que não perdoa. 
 
    E nessa nudez profunda, percebe-se que não há companhia maior do que a própria essência. Que as cicatrizes contam histórias que ninguém ouviu, mas que sustentam o corpo como raízes invisíveis. Que a dor, antes insuportável, agora é lembrança de sobrevivência. Que a solidão, tão temida, é na verdade um útero: dentro dela, renasce-se. 
 
    Ao estar só até o limite do silêncio, a alma encontra sua morada secreta. E compreende, enfim, que não é preciso ninguém para ser inteiro, pois a inteireza já estava ali, escondida no fundo, esperando ser descoberta. 
 
Pensamentos: Odair José, Poeta Cacerense

quinta-feira, 11 de setembro de 2025

O Misterioso Homem na Praça Barão - (Helena)

    Naquela noite, o Cine Xin, orgulho cultural de Cáceres, reluzia como um farol no coração da cidade. Cartazes coloridos anunciavam a grande estreia, e uma multidão ansiosa se reunia na porta, disputando os melhores lugares. Entre os que haviam vindo de longe estava um pequeno grupo de jovens de Lambari D’Oeste, encantados com a promessa de glamour e novidade. 
 
    Entre eles, destacava-se, ainda que quisesse se esconder, uma jovem ruiva de olhos verdes, chamada Helena. Tímida, guardava as palavras sempre mais no peito do que na boca. Os colegas riam alto, empurravam-se, trocavam gracejos com as moças cacerenses, mas Helena caminhava alguns passos atrás, observando tudo como quem teme pertencer ao cenário. 
 
    Foi quando, ao cruzarem a Praça Barão, ela o viu. 
 
    Sentado num banco de ferro, quase dissolvido na sombra das árvores antigas, estava o Misterioso Homem da Praça Barão. Sua figura, alta e magra, parecia envolta em um casaco escuro, mesmo no calor da noite. Não havia quem ousasse encará-lo diretamente, mas Helena, por acaso ou destino, encontrou seus olhos. Eram fundos, de uma cor indecifrável, e traziam um silêncio que parecia atravessar séculos. 
 
    Por um instante, Helena esqueceu os colegas, o filme, a cidade. Sentiu-se olhada como nunca antes. Não com desejo ou curiosidade vulgar, mas como se aquele homem a enxergasse inteira — seus medos, suas hesitações, o rubor que lhe tomava o rosto. 
 
    — Anda, Helena! — gritou um dos rapazes, puxando-a pelo braço. — Vamos perder os trailers! 
 
    Ela desviou o olhar, mas a inquietação ficou. Durante a sessão, mal conseguiu prestar atenção à tela. A cada explosão de aplauso, lembrava-se do silêncio daquele olhar. A cada cena vibrante, voltava à sombra do banco da praça. 
 
    Ao fim do filme, já de madrugada, quando o grupo se dirigia de volta à hospedaria, Helena, num impulso, parou novamente diante da Praça Barão. Os colegas seguiram adiante, distraídos. O banco, agora vazio, parecia carregar ainda a marca de uma presença. 
 
    E então, no reflexo de uma das janelas antigas do casarão da esquina, ela jurou ver a silhueta do Misterioso Homem. Não no banco, não na rua, mas dentro do vidro, como se fosse habitante de outro tempo. 
 
    Helena estremeceu. Perguntou a si mesma se era fruto da imaginação, se a noite não lhe pregava uma peça. Mas no íntimo, sabia: poucas pessoas conseguiam ver o Misterioso Homem. Menos ainda eram por ele reconhecidas. 
 
    Na viagem de volta para Lambari, seus colegas falavam do filme, das moças cacerenses, do movimento da cidade. Helena permanecia calada, com os olhos fixos na estrada escura. Em seu coração tímido, no entanto, crescia uma certeza: ela havia sido escolhida. 
 
    E, em noites futuras, quando retornasse a Cáceres, sabia que buscaria, na Praça Barão, aquele olhar que parecia sussurrar segredos de outra vida. 
 
Conto: Odair José, Poeta Cacerense

sexta-feira, 5 de setembro de 2025

Desejos ocultos

    Os desejos ocultos do coração são como sementes lançadas em silêncio no solo mais profundo da alma. Eles não pedem permissão para nascer, apenas crescem nas frestas da noite, alimentados por sonhos que não ousamos confessar. 
 
    São chamas tímidas que ardem atrás dos olhos, sussurros que só o peito escuta, caminhos que se desenham no escuro. Alguns deles são tão frágeis que tememos que o mundo os quebre; outros, tão intensos, que o mundo não suportaria vê-los expostos. 
 
    O coração esconde porque sabe que o desejo, quando revelado, corre o risco de se perder no julgamento, na pressa, no esquecimento. Mas, ainda assim, pulsa — e esse pulsar é a prova de que o invisível também guia nossas escolhas. 
 
    No silêncio dos desejos ocultos, mora a mais pura verdade: aquilo que somos quando ninguém nos observa. 
 
Pensamentos: Odair José, Poeta Cacerense

sexta-feira, 29 de agosto de 2025

A natureza humana e os desafios do século XXI

    A natureza humana é, ao mesmo tempo, força criadora e fragilidade latente. Carregamos dentro de nós o instinto de sobrevivência, mas também a sede de transcendência — queremos viver, mas também dar sentido ao viver. Essa dualidade nos acompanha desde os tempos mais antigos e se projeta, agora, nos desafios do século XXI. 
 
    Vivemos um século marcado pela velocidade: da informação, da tecnologia, da comunicação. Nunca fomos tão capazes de conectar mentes em pontos distantes do planeta, mas nunca estivemos tão expostos ao isolamento e à fragmentação. O excesso de estímulos desafia nossa capacidade de refletir, e o imediatismo coloca em xeque a paciência necessária para compreender a si mesmo e ao outro. 
 
    A natureza humana também se confronta com dilemas éticos inéditos: a inteligência artificial que questiona os limites da consciência, as mudanças climáticas que pedem responsabilidade coletiva, as desigualdades que a globalização intensificou. Somos chamados a decidir não apenas como queremos viver, mas que humanidade queremos ser. 
 
    O século XXI, assim, nos obriga a encarar a contradição central do humano: somos capazes de construir pontes ou muros, de salvar o planeta ou explorá-lo até o esgotamento, de cultivar solidariedade ou indiferença. O desafio maior talvez não esteja fora, mas dentro: compreender que a natureza humana não é destino fixo, mas potência em disputa. 
 
    E, nesse horizonte, a verdadeira medida do século não será o avanço técnico, mas a escolha ética — o quanto conseguimos transformar nosso poder em cuidado, nossa razão em sabedoria, e nossa inquietação em sentido. 
 
Reflexão: Odair José, Poeta Cacerense

domingo, 24 de agosto de 2025

O encontro

    Havia uma febre em teus olhos antes mesmo do primeiro toque. Um ímã silencioso que me puxava para o território proibido de tua pele. Não era o amor que me guiava, mas o desejo bruto — esse animal cego que se alimenta de suor e silêncio. 
 
    Tuas mãos eram oráculos, adivinhavam o que eu não ousava dizer. E quando roçaram minha pele, o mundo desabou em carne e fogo. Nada mais havia além do roçar de tua boca, da respiração entrecortada, da promessa úmida que teus lábios riscavam em mim. 
 
    Era um rito, não um encontro. Era a vertigem de me perder inteiro para que tu me devolvesses em pedaços. Cada carícia era um corte, cada gemido um selo secreto, e o tempo, cúmplice cruel, alongava cada segundo como se o instante fosse eterno. 
 
    Deliciar-me em teus carinhos era morrer e nascer em ondas. Era ter a certeza de que nenhum outro toque seria capaz de me reconstruir. Porque em teu corpo eu não encontrava apenas prazer, mas um abismo — e eu, insano, desejava sempre cair mais fundo. 
 
Conto: Odair José, Poeta Cacerense

domingo, 17 de agosto de 2025

A Noite da Alma-de-Gato

    Numa noite abafada de agosto, quando o vento do pantanal parece segurar a respiração, alguém comentou no boteco do Zé Tavares que uma Alma-de-Gato foi vista nos fundos do cemitério. Uns riram, outros fizeram o sinal da cruz. 
 
    Dona Antônia, benzedeira de mão firme, disse que essa aparição não é à toa — é aviso de mudança, de água grande ou de festa grande, porque as almas gostam de se misturar nas alegrias e tristezas do povo. 
 
    A conversa se espalhou mais rápido que notícia de eleição. E na manhã seguinte, ninguém lembrava direito se era lenda ou verdade. Mas, no íntimo, todos passaram a caminhar um pouco mais rápido ao voltar pra casa depois das 10. 
 
Crônica: Odair José, Poeta Cacerense

sexta-feira, 15 de agosto de 2025

A Sombra do Sobrado

    No final da Rua Coronel José Dulce, um sobrado de janelas azuis guarda mais que poeira e silêncio. Dona Laurinda, sentada na varanda com sua cuia de tereré, jura que, à noite, vê sombras atravessarem os cômodos — não de gente viva, mas de gente que viveu. 
 
    Turistas passam, fotografam, comentam sobre a arquitetura colonial e seguem sem saber que aquele sobrado já abrigou festas de carnaval regadas a polca paraguaia e serenatas que varavam a madrugada. Hoje, só o vento dança lá dentro, mas quem escuta com atenção ainda ouve um violão chorando, como se a cidade quisesse lembrar que a saudade também é patrimônio. 
 
Crônica: Odair José, Poeta Cacerense

quinta-feira, 7 de agosto de 2025

Meu coração é grande

    Cáceres, início dos anos 90. A Praça Duque de Caxias fervia no começo da noite, com as luzes amareladas dos postes e o cheiro de pastel vindo da barraca da esquina. Os bancos de madeira, ainda pintados de branco, era ponto de encontro de gente que queria ver e ser vista. No ar, um zunido distante de insetos e as primeiras batidas abafadas vindas do UBSSC — o clube onde, naquela época, qualquer festa parecia o evento do ano. 
 
    Geraldo, ou “Gê” para alguns, caminhava com o passo confiante de quem usava a farda com o mesmo cuidado que outros usavam perfume caro. Jovem militar, ele cultivava um sorriso fácil e um olhar que misturava charme e ousadia — qualidade ou defeito, dependendo de quem julgasse. 
 
    Naquela noite, recebeu um convite inesperado: "Aparece no UBSSC hoje, vai ser bom". O recado veio por um amigo, sem muito detalhe. E, como de costume, Gê não precisou pensar duas vezes. 
 
    O que ele não sabia é que o convite era parte de uma armadilha silenciosa. Havia semanas que Marisa, a morena de fala rápida que o chamava de “Anjo”, e Marinalva, a loira de riso tímido que carinhosamente o chamava de "Gê”, vinham trocando suspeitas. E, numa cidade onde segredo corre mais rápido que vento no rio Paraguai, as duas descobriram que ele não estava dividindo apenas o tempo… mas também o coração. 
 
    Quando Geraldo chegou à praça, não precisou procurar ninguém. Marisa e Marinalva estavam lá, lado a lado, braços cruzados, como duas estátuas prestes a ganhar vida. 
 
    — Boa noite… — arriscou ele, ainda com aquele sorriso que acreditava resolver qualquer mal-entendido. 
 
    — Gê… — disse Marinalva, com a voz dura. 
 
    — Anjo… — disse Marisa, mais fria ainda. 
 
    Ele sentiu o ar pesar. As pessoas nos bancos próximos começaram a prestar atenção, farejando drama como quem sente cheiro de chuva. 
 
    — Hoje você vai dizer — começou Marisa. — Com qual de nós você quer ficar. 
 
    — E qual de nós você ama de verdade — completou Marinalva. 
 
    Geraldo respirou fundo. A pausa foi calculada. O olhar dele percorreu o rosto das duas, como se fosse um rei prestes a decidir qual princesa escolher. Mas então, com aquele humor que sempre achou irresistível, deixou cair a frase que entraria para o folclore da praça: 
 
    — Meu coração é grande… cabe a duas. 
 
    Silêncio. E então, dois sons secos e quase simultâneos ecoaram pela praça: PÁ! PÁ! Um tapa de cada lado. 
 
    Geraldo ficou parado, a face ardendo e a vaidade amassada, enquanto as duas viravam as costas ao mesmo tempo, caminhando para lados opostos. 
 
    No banco próximo, alguém riu alto. No banco da esquina, um senhor comentou: 
 
    — Bem feito. Quem tem coração grande, que arrume também um rosto de ferro. 
 
    E assim, naquela noite, o “Gê” e o “Anjo” morreram… mas nasceu o Geraldo que pensaria duas vezes antes de tentar dançar com duas músicas ao mesmo tempo. 
 
Conto: Odair José, Poeta Cacerense

domingo, 3 de agosto de 2025

O que será que vimos?

    Não sei se foi um OVNI. Ela jura que sim. Eu digo que não, ou pelo menos, que não é tão simples assim. 
 
    Estávamos voltando para casa pela estrada de terra, depois de visitar a mãe dela no sítio. O céu estava limpo, mas pesado, como se a noite fosse mais espessa do que o normal. Eu dirigia devagar, faróis cortando a poeira que se levantava atrás do carro. Foi aí que ela pediu para eu parar. 
 
    — Olha. — disse, a mão tocando meu braço. 
 
    Acima das copas das árvores, havia uma luz. Não piscava como as de avião. Não tremia como as de torre de comunicação. Ela era firme, silenciosa, e... maior do que deveria ser. Eu fiquei ali, encostado no volante, tentando encaixar aquilo numa categoria conhecida: satélite, drone, estrela exagerada. Ela, não. Ela deu um passo para fora, no meio da estrada, o rosto virado para cima, olhos brilhando. 
 
    — Eles estão nos observando — murmurou, como se fosse uma revelação. 
 
    A luz começou a se mover. Primeiro devagar, depois numa aceleração impossível, desaparecendo atrás das nuvens como se tivesse sido engolida. O silêncio que ficou depois parecia mais pesado que o céu. 
 
    No caminho de volta, não falamos muito. Ela apertava minhas mãos de vez em quando, como quem compartilha um segredo. Já eu, tentava montar um mapa mental de trajetórias, velocidades, ângulos — qualquer coisa que pudesse explicar. 
 
    Em casa, ela ligou para a irmã e contou tudo. No relato dela, o objeto era metálico, oval, com uma luz pulsante no centro. Eu não vi nada disso, mas ela falava com tanta convicção que, por um instante, quase acreditei. 
 
    Agora, dias depois, ela continua dizendo que testemunhamos algo extraordinário. Eu continuo dizendo que foi só um fenômeno aéreo não identificado — e isso, para mim, não é a mesma coisa. 
 
    Talvez tenhamos visto a mesma luz, mas não o mesmo evento. Talvez nenhum de nós esteja errado. Ou talvez, no fundo, só exista uma verdade: às vezes, a realidade não é o que acontece no céu, mas o que cada um decide enxergar. 
 
Conto: Odair José, Poeta Cacerense

domingo, 27 de julho de 2025

O lugar onde eu moro

    Houve um tempo em que eu me evitava. 
 
    Sim, como quem cruza a rua para não ter de encarar alguém incômodo, eu me desviava de mim. Me ocupava de vozes alheias, de rotinas emprestadas, de expectativas que nem sabia de onde vinham — apenas as carregava, como se fossem parte da mobília da alma. 
 
    Mas um dia, o barulho do mundo cansou. Ou fui eu quem cansou de escutá-lo. 
 
    Então me sentei. Não porque quis, mas porque algo em mim desabou. Foi ali, entre as ruínas do que eu fingia ser, que me encontrei. Pela primeira vez, sem desculpas. 
 
    No começo, estranhei minha própria presença. Achei-me silencioso demais. Exigente. Incômodo até. Ficar comigo era como visitar um velho que se recusa a sorrir. 
 
    Mas insisti. Fui ficando. Como quem aprende uma língua nova, fui ouvindo meu próprio idioma interno — cheio de pausas, incoerências, dúvidas e pequenos espantos. Descobri que pensar com profundidade é uma forma de escutar. 
 
    E escutar a si mesmo é perigoso. Pode-se descobrir que se viveu mais para os outros do que para si. Pode-se perceber que o medo moldou mais decisões do que o desejo. Pode-se lembrar de sonhos enterrados com pressa. 
 
    Mas também — e isso é o que salva — pode-se descobrir que há em si um lugar que nunca foi invadido. Um quarto sem janelas, onde nenhuma crítica entrou. Um abrigo, onde a chama do ser ainda arde, tímida, mas intacta. 
 
    Hoje gosto de estar comigo. Não porque me acho pronto, bonito ou sábio — mas porque sou verdadeiro. Comigo, não preciso impressionar, competir, provar. 
 
    Comigo, eu apenas sou. E isso, descobri, é o que mais se aproxima da liberdade. 
 
Conto: Odair José, Poeta Cacerense

domingo, 20 de julho de 2025

O Velho Sábio

    Havia um homem que todos chamavam de velho Zué. Não se sabia ao certo sua idade, apenas que ele já estava ali antes das ruas serem asfaltadas e das janelas se trancarem com medo. Morava numa casa simples, com varanda azul desbotada, onde passava as tardes observando o tempo passar sem se apressar. 
 
    Os jovens da vila, quando o coração doía ou a cabeça pesava, vinham sentar-se ao seu lado. Zué não curava ninguém — só escutava e, às vezes, falava. E quando falava, era como quem planta sementes, não como quem dá ordens. 
 
    Certa tarde, um jovem ofegante subiu os degraus da varanda, frustrado com a vida, os outros, e até consigo mesmo. 
 
    — Zué… como é que o senhor vive assim… tão calmo, com tudo do lado de fora desmoronando? 
 
    O velho sorriu com os olhos e falou devagar, como quem atravessa um rio sem molhar o medo. 
 
    — Sente aí, rapaz… Vou te contar umas coisinhas que a vida me ensinou. Umas doídas, outras doces. Mas todas verdadeiras. Preste bem atenção e aprenda.
 
    Tirou o olhar do horizonte e olhou para o jovem a sua frente, suspirou fundo e começou: 
 
    Em primeiro lugar. “Nem tudo merece resposta.” — Já vi homem se perder por responder ofensa com grito. O silêncio, às vezes, ensina mais do que a raiva. Só fala com veneno quem tem medo de morrer esquecido. 
 
    Segundo. “Expectativa demais é sede com copo furado.” — Espera dos outros o que eles puderem dar. O resto, dá você mesmo pra sua alma. Se não der, ela seca. 
 
    Terceiro. “O que grita ‘urgente’ quase nunca é importante.” — Muita coisa só parece necessária porque o mundo corre como doido. Mas correr sem saber pra onde é só outra forma de se perder. 
 
    Em quarto lugar. “Tranquilidade não é um lugar sem barulho. É saber ouvir o barulho sem se perder nele.” — A calma que carrego não é falta de problema, não, menino. É treino de não deixar o problema sentar na minha cabeça. 
 
    Quinto. “Pouca coisa vale um aborrecimento inteiro.” — Já perdi noite de sono por bobagem. Hoje, se não for pra alimentar alma, deixo passar. Quem guarda tudo, envenena a própria carne. 
 
    Em sexto lugar. “Cuide do corpo — ele é o barco onde a mente navega.” — Um pouco de sol, comida quente, cochilo bom… parece pouco, mas sem isso, até pensamento vira pedra. 
 
    Sétimo. “A solidão, quando amiga, vale mais que mil conversas vazias.” — Estar só é ruim só pra quem tem medo do próprio silêncio. Aprende a conversar contigo… você vai se surpreender. 
 
    Em oitavo lugar. “Nem toda briga é tua. E isso é liberdade.” — Já entrei em guerra que nem era minha. Hoje, olho e penso: vale minha paz? Se não vale, deixo com Deus. 
 
    Nono. “Comparar é esquecer de viver a própria história.” — A vida do outro pode até parecer bonita… mas ninguém exibe cicatriz. Cuida da tua estrada. Ela é só tua. 
 
    E em décimo lugar. “Soltar é a arte de não morrer preso.” — Tem coisa que a gente precisa deixar ir: gente, dor, culpa, o que não foi. Soltar não é desistir… é abrir espaço pra respirar. 
 
    O jovem ficou quieto, olhando o pôr do sol escorrer entre as folhas. 
 
    — O senhor aprendeu tudo isso vivendo? 
 
    Zué soltou um riso leve. 
 
    — Não, meu filho… aprendi errando. A tranquilidade vem é depois da tempestade, quando a gente entende que algumas dores são só avisos. O segredo é não se apegar ao trovão. 
 
Conto: Odair José, Poeta Cacerense

quinta-feira, 17 de julho de 2025

O homem que aprendeu a ler e não lia

    Ele aprendeu a ler aos sete, como todos da sua turma. Fez o beabá, gaguejou as primeiras sílabas, destravou o mundo com a ponta dos olhos. A professora, emocionada, disse: “Você agora tem a chave do infinito.” Mas ele achou exagero. Preferia soltar pipa. 
 
    Cresceu. A leitura foi lhe exigida como escada para empregos, provas, manuais de instrução. Aprendeu a decifrar placas, contratos, receitas de bolo e promessas políticas. Lia como quem mastiga pedra — com esforço, sem prazer. Nunca entendeu os que choravam em romances ou sorriam com poemas. Para ele, livros eram caixas sem surpresa, sempre pesadas demais. 
 
    Na juventude, experimentou Camus por insistência de uma garota bonita. Leu uma página e bocejou. “Gente morta escrevendo tristeza, pra quê?”, resmungou. Voltou ao futebol. A garota partiu com um rapaz que recitava Drummond na praça. 
 
    Teve empregos, filhos, uma vida funcional. Sabia ler, lia o necessário — rótulos, extratos, mensagens de celular. Nunca passou de cinquenta páginas em livro algum. E se vangloriava disso, como quem sobreviveu a uma guerra sem jamais entrar nela. 
 
    Na velhice, uma tarde, ficou sozinho com a biblioteca herdada do irmão. Estantes inteiras. Pegou um exemplar de capa gasta: “Memórias Póstumas de Brás Cubas”. Abriu por abrir. Leu três linhas. Sentiu um incômodo. Leu mais três. A ironia o feriu como navalha. 
 
    Largou o livro. 
 
    Saiu para a varanda. Sentou-se. As árvores estavam imóveis. O vento também parecia calado. Pela primeira vez, teve a sensação de que havia vivido menos do que poderia. Não em tempo, mas em camadas. Como quem habita uma casa, mas nunca sobe as escadas. 
 
    Morreu alguns meses depois. Seus filhos venderam a biblioteca. Na lápide, escreveram: "Aqui jaz um homem de palavra." Mas as palavras, essas, ele nunca quis conhecer de verdade. 
 
Conto: Odair José, Poeta Cacerense

segunda-feira, 14 de julho de 2025

O leitor de si mesmo

    Encontrou a caixa por acaso, ao limpar o armário onde só guardava coisas que preferia esquecer. Ela estava ali, intacta, como uma armadilha. Nenhuma etiqueta, nenhum aviso. Apenas uma caixa de papelão, morna de poeira, pesada de memórias. 
 
    Abriu com um gesto lento, quase cerimonial. Dentro, os cadernos — aqueles de capa dura, alguns decorados com colagens, outros com frases sublinhadas com raiva. Os diários. Os testemunhos de um tempo em que viver doía, e escrever parecia cura. 
 
    Hesitou. Talvez fosse melhor fechá-los e manter a ficção de que nunca existiram. Mas a curiosidade tem sempre um pacto com o abismo. E então leu. 
 
    A primeira frase era uma tragédia em miniatura: "Hoje ela não olhou pra mim. Acho que vou morrer." 
 
    Riu. Mas a risada foi curta, engasgada. Havia algo ali. Algo que já tinha sido verdade. E a verdade, mesmo ridícula, nunca é inofensiva. 
 
    Passou as páginas como quem folheia os escombros de uma casa incendiada. Cada palavra tinha sido escrita com urgência, como se o mundo fosse acabar naquela manhã, naquela tarde, naquela ausência. E, de certo modo, havia mesmo acabado — várias vezes. 
 
    O que o desconcertava não era a ingenuidade. Era o excesso de significado. A forma como tudo — absolutamente tudo — era vivido com intensidade religiosa: um toque de mão, uma palavra atravessada, o barulho do coração quando alguém chamava seu nome. 
 
    Mas agora… Agora, aquele que escrevia estava morto. Ou, pelo menos, enterrado sob tantos outros que ele teve que se tornar para continuar existindo. 
 
    Foi então que a pergunta se formou, nítida: Quem era esse? O garoto que escrevia ou o homem que lia? 
 
    Porque o que lia julgava, zombava, tentava dissociar-se da dor alheia — mas o que escrevia sabia exatamente o que estava fazendo: tentava não desaparecer. 
 
    E foi aí que ele entendeu. Aquelas palavras estavam mortas, sim. Mas não por desgaste do tempo. Foram assassinadas. Por ele mesmo. Por esse leitor cético, cansado, que agora as contemplava com ar de superioridade. 
 
    Fechou o caderno. 
 
    Por um instante, quis pedir desculpas a si mesmo. Mas era tarde demais. A criança que escrevia ainda estava ali, presa nas entrelinhas, esperando ser salva. Mas o adulto não tinha mais as palavras certas. Só o silêncio. 
 
Conto: Odair José, Poeta Cacerense

domingo, 6 de julho de 2025

Entre o amor e a escrita

    Houve um tempo em que achei que poderia conciliar as duas paixões: a mulher e a escrita. Acreditei, tolo que sou, que seria possível amar com o corpo e com a pena, dividir os dias entre o colo de alguém e o silêncio necessário das ideias. Mas aprendi, com cada história interrompida, com cada adeus não tão poético quanto merecia, que a escrita é uma amante ciumenta — e, pior, silenciosa. 
 
    Dizem que o amor precisa de presença. E como explicar que meu corpo até está ali, no sofá, na cama, na mesa do café, mas que minha alma se encolhe num canto onde ela não pode entrar? Como traduzir que, mesmo de mãos dadas, estou revisando um verso, colhendo uma imagem, tentando encaixar o mundo inteiro em duas linhas? 
 
    Elas não entendem, e talvez eu também não soubesse explicar. Que o isolamento não é desinteresse, é necessidade. Que o sumiço não é desprezo, é imersão. Que, quando fecho a porta e deixo o mundo lá fora, não estou fugindo de ninguém — estou buscando algo que nem sei o nome. E isso dói. Mais nelas, que não escolheram conviver com fantasmas. Mais em mim, que escolhi. 
 
    A escrita pede tempo, silêncio e feridas abertas. Pede que eu pare no meio de um beijo porque me veio um verso. Que eu anote uma metáfora no guardanapo enquanto ela me conta algo importante. Que eu acorde de madrugada, não para abraçá-la, mas para anotar um sonho que talvez vire conto. A escrita tem dessas crueldades. 
 
    E há os poemas, claro. Ah, os poemas. Quase sempre escritos para outras — que não existem, ou que existiram só por um momento e ficaram eternizadas numa estrofe. E como dizer que o poema nunca é sobre quem pensa que é? Ou pior, que às vezes é, mas já foi, já passou, e agora só importa o efeito da palavra, não o passado que a gerou? 
 
    Já vi olhares de ciúmes para papéis. Já fui acusado de amar demais as letras e de menos quem estava ao meu lado. Já ouvi: “Você escreve coisas tão bonitas, mas não me escreve nada.” Como se o amor que ofereço pudesse ser mensurado em versos. Como se eu não tivesse entregado muito mais do que um poema — entregado a mim mesmo, inteiro, ainda que dividido. 
 
    A introspecção também pesa. O silêncio, os olhos vagando por dentro, as respostas dadas com um “hã?” que denuncia a viagem. Elas querem alguém inteiro no agora, e eu vivo metade no passado, metade no imaginário. Como amar alguém que só está aqui pela metade? 
 
    Às vezes, penso que serei sempre esse: o que ama e afasta. O que acolhe e se isola. O que escreve para entender o mundo, e no processo, se distancia dele. Não sei. Só sei que sigo escrevendo. Não por escolha, mas por condição. Porque se me tirarem isso, o silêncio me mata. E com ele, a última chance de amar, mesmo que seja de longe, mesmo que seja com palavras. 
 
    Talvez um dia eu encontre alguém que entenda. Que não tente competir com a escrita, mas caminhe ao lado dela. Que aceite perder-me para os poemas, desde que eu volte. E eu volto. Sempre volto. Mais calado, mais estranho, mais inteiro. E talvez, um pouco mais pronto para amar. 
 
Crônica: Odair José, Poeta Cacerense