segunda-feira, 21 de abril de 2025

Os Que Se Desfizeram - Capítulo Final — Aqueles Que Deixaram de Ser

    Há um rumor antigo, entre as pedras mais quietas da floresta. Dizem que, se alguém escuta com o corpo inteiro, pode ouvir as vozes dos que deixaram o nome para trás. 
 
    Não como palavras. Mas como temperatura. Como movimento no ar. 
 
    Mirra voltou à clareira. Não uma, mas muitas vezes. Cada vez, trazia algo: um nome novo, uma folha marcada, um pedaço de si. 
 
    Nunca teve certeza se Elias — ou o que restou dele — a reconhecia. Mas a cada visita, as árvores ao redor se inclinavam. O chão ficava mais quente. 
 
    Um dia, ela não voltou mais. E não foi porque esqueceu. 
 
    Foi porque se tornou também parte do caminho. 
 
    Outros vieram depois. Desfeitos. Quase desfeitos. Liminares. 
 
    E encontraram a clareira. Sentaram no chão. Ouviram o que não se dizia. 
 
    E entenderam: o Desfeito não é um fim. É uma nova gramática da existência. Um jeito de continuar sem forma fixa. 
 
    A floresta cresceu. Tomou cidades pequenas. Escondeu postes. Apagou placas. 
 
    Mas não era destruição. Era… outra coisa. Era o mundo finalmente lembrando que também podia mudar. 
 
    E um dia, alguém — uma criança, talvez — perguntou para a mãe o que havia ali, naquela clareira onde o tempo parecia respirar diferente. 
 
    A mãe olhou. E, sem saber por que, sorriu com os olhos úmidos. 
 
    “Ali moram os que tiveram coragem de deixar de ser.” 
 
    A criança ficou em silêncio. Depois escreveu um nome no chão com o dedo. 
 
    Não era um nome conhecido. Mas soava certo. 
 
    E do solo, algo se moveu. 
 
FIM 
 
Conto: Odair José, Poeta Cacerense

Os Que Se Desfizeram - Capítulo 9 — A Que Sabe o Nome das Ausências

    Ela se chama Mirra. Ou foi assim que se apresentou quando chegou à floresta. Os outros não perguntaram se era nome ou metáfora. 
 
    Mirra é magra como um lamento. Fala pouco. Mas quando fala, as palavras caem como sementes: ficam em silêncio por um tempo, e depois, brotam onde menos se espera. 
 
    Ela tem um caderno feito de pele. Nele, escreve nomes. Não os que ouve — mas os que sente que existiram. 
 
    Diz que é uma cartógrafa do que já não é. Que cada nome esquecido é uma raiz perdida, e que seu papel é tentar desenhar o mapa do que a floresta apagou. 
 
    Nos últimos dias, um nome começou a sussurrar dentro dela. Não completo. Não claro. Mas constante. 
 
    El… 
    El… 
    ias. 
 
    Toda vez que ela tenta escrevê-lo, a tinta sangra no papel. E o nome se dissolve. 
 
    Mas a sensação permanece. 
 
    Um calor no centro do peito. Uma ausência específica, com peso e cheiro. 
 
    Mirra caminha pela floresta como quem busca um túmulo sem saber onde foi enterrado. Sente rastros. Toques. Ecos de passos. 
 
    Até que chega a uma clareira. 
 
    No centro, há um corpo. Ou algo como um corpo. Parece árvore. Mas pulsa. Parece terra. Mas respira. 
 
    Ela se ajoelha. Encosta a testa no solo. 
 
    E então sente: o nome que tenta escrever é esse corpo agora. 
 
    Ele se foi. Mas está. 
 
    Ela chora. Mas sem desespero. 
 
    Chora como quem reconhece uma constelação esquecida. 
 
    Então, pela primeira vez, rasga uma página do caderno. E deixa-a ali. Como oferenda. Ou promessa. 
 
    “Se um dia lembrar de mim,” 
     “me chama.” 
 
    E parte. 
 
    Sem olhar para trás. Porque agora ela carrega um novo nome. E um novo mapa começa a se desenhar dentro dela. 
 
(Continua...) 
 
Conto: Odair José, Poeta Cacerense

Os Que Se Desfizeram - Capítulo 8 — O Corte

    Choveu a noite inteira. Mas a chuva não caía do céu. Ela subia do chão — neblina espessa feita de lembrança e medo evaporado. 
 
    Elias vagava. Ou era levado? Os pés moviam-se sem ordem. As mãos, fechadas em punhos — dentro de um, a agulha de osso. No outro, o fragmento de Vidro. 
 
    Ele estava só. Mas as presenças passadas o seguiam como sombras: o sussurro da Costureira, o riso de Nula, a voz quebrada do Pregador, o olhar do Vidro, a promessa da árvore, o aviso do apodrecido. 
 
    Tudo pulsava dentro dele. Como se a floresta tivesse brotado em suas vísceras. 
 
    Então, ele chegou. Não a um lugar. Mas a um espaço interno que não suportava mais contenção. 
 
    Ali, caiu de joelhos. 
 
    Ali, quebrou o silêncio. 
 
    Primeiro, gritou. Não palavras — um som que rasgava a garganta e abria portais. 
 
    Depois, chorou. Mas as lágrimas não caíram: elas evaporaram assim que tocaram o ar. O que chorou, alimentou algo invisível. 
 
    Então… tirou do bolso o fragmento de Vidro. 
 
    Olhou para ele. Beleza insuportável. 
 
    Lembrou do que Vidro dissera: “Quando chegar a hora, coloca isso na boca. E morde.” 
 
    Elias levou o cristal até os lábios. Hesitou. 
 
    Lembrou de quem fora. Da infância em que cabia mal. Dos empregos que odiava. Das festas onde sorria por obrigação. Dos espelhos onde procurava sinal de si, e não achava. 
 
    Mordeu. 
 
    O corte foi imediato. A boca encheu-se de sangue e luz. Os dentes quebraram. A língua cantou. O mundo silenciou. 
 
    E então… a pele se abriu em rachaduras, não de dor, mas de revelação. O manto da Costureira se fundiu à carne. A agulha de osso, em sua mão, brilhou e desapareceu dentro do braço. Ramos finos brotaram sob a pele, mas não eram de planta — eram raízes de linguagem esquecida. 
 
    Elias caiu para trás, os olhos sem foco. 
 
    Por horas — ou dias — ficou ali, sendo. 
 
    Nem homem. Nem bicho. Nem espírito. Apenas um nó novo na floresta. 
 
    Quando abriu os olhos, viu o mundo com outra textura. As árvores falavam. O vento carregava histórias. E sua respiração… era feita de outra substância. 
 
    Ele não sabia mais seu nome. E por isso, finalmente estava livre. 
 
(Continua...) 
 
Conto: Odair José, Poeta Cacerense

Os Que Se Desfizeram - Capítulo 7 — O Que Se Recusou a Mudar

    Alguns chegam à beira da transformação e estancam. Travam os músculos da alma. Emperram as engrenagens internas. Fingem que não ouviram o chamado. 
 
    Acham que podem voltar. Que basta querer. Que basta esquecer. 
 
    Este foi um deles. 
 
    Chamava-se Mauro, no tempo dos nomes. Tinha tudo planejado: a fuga, o sumiço, a redenção final em algum ermo. Mas quando a floresta o acolheu — quando o primeiro espelho interior quebrou — ele não quis atravessar. 
 
    Quis resistir. Acreditava que era mais forte que o processo. Mais lúcido. Mais… humano. 
 
    Por um tempo, conseguiu. 
 
    Fez abrigo. Caçou. Guardou a carteira no bolso. Repetia o próprio nome antes de dormir, como um feitiço contra o esquecimento. 
 
    Mas com o tempo, o corpo começou a contrariá-lo. Os olhos embaçaram. A pele ficou pegajosa, translúcida em alguns pontos. As unhas caíam e nasciam de novo, em espiral. A voz — antes grave e firme — virou um zumbido entalado na garganta. 
 
    Ele ainda falava. Mas só dizia coisas que já não faziam sentido. 
 
    “Não estou perdido, estou descansando.” 
    “Amanhã volto pra casa.” 
    “Isso tudo é metáfora.” 
 
    Vivendo nas bordas da floresta, Mauro virou um santuário torto para quem hesita. Os Desfeitos evitam passar por ali. O cheiro é ácido. O ar, viscoso. 
 
    Alguns dizem que ele guarda espelhos feitos de carne. Outros, que ele enterra os nomes dos outros para se manter lembrado. 
 
    Elias chegou perto de sua caverna por engano. Sentiu o cheiro antes de ver. 
 
    Mauro saiu das sombras, cambaleando. Não era velho — mas o tempo nele parecia mal distribuído. 
 
    Os olhos estavam intactos. Apenas os olhos. E isso era pior. 
 
    — Ainda dá tempo — ele disse, com a boca cheia de limo. 
 
    Elias não respondeu. Mas algo em sua espinha se crispou. O medo do que ele poderia se tornar, caso parasse agora. 
 
    Mauro estendeu a mão. Nela, um relógio sem ponteiros. 
 
    — Você pode ficar aqui. Comigo. Nada muda se a gente não deixa. Viu? Eu tô bem. 
 
    Um verme caiu do canto do olho dele. 
 
    Elias apenas caminhou para trás. Sem pressa. Mas sem hesitação. 
 
(Continua...) 
 
Conto: Odair José, Poeta Cacerense

Os Que Se Desfizeram - Capítulo 6 — O Que Virou Floresta

    A floresta sempre esteve viva. Mas não como os botânicos pensam. Não como os místicos querem. Ela respira por meio de quem se perdeu. Ela cresce em cima do que foi abandonado. 
 
    Alguns Desfeitos não aguentam a travessia. São belos demais, partidos demais, humanos demais para sustentar o depois. Esses... viram raiz. Galho. Musgo. Árvore. 
 
    Eles não morrem. Eles continuam. Em formas que não lembram mais nome, nem rosto, nem culpa. 
 
    Elias caminhava entre troncos que pareciam pulsar. Sentia o peso do fragmento de Vidro no bolso. E a agulha de osso, presa ao manto, latejava como um nervo externo. 
 
    A cada passo, a floresta parecia se aproximar de dentro. Como se estivesse crescendo por trás de seus olhos. 
 
    Foi então que sentiu. Um sussurro — não no ouvido, mas nas vértebras. 
 
    Se virou. E estava lá. A árvore. 
 
    Mas não era árvore. 
 
    Tinha algo de coluna vertebral, algo de costela humana, algo de boca, embora não houvesse rosto. 
 
    E do tronco, pendiam nomes. Escritos em línguas extintas, em folhas que nunca caíam. 
 
    Elias se aproximou. Sentiu um arrepio que não era medo. Era… reconhecimento. 
 
    A árvore abriu os olhos. Sim, tinha olhos. Dois. Escuros. Vazios. 
 
    E falou. Não com som. Mas com cheiro, vibração, lembrança. 
 
    “Você não precisa continuar sendo.” 
    “Pode apenas crescer.” 
    “Mas o preço é esquecer.” 
 
    Elias recuou um passo. E então lembrou do que Nula dissera: “Quando doer tanto que esquecer seu nome, me chama.” 
 
    Mas ele ainda se lembrava. 
 
    Ainda era Elias. 
 
    Ainda. 
 
    Atrás dele, a árvore fechou os olhos. E sorriu com os galhos. 
 
    Ela sabia. A hora estava próxima. 
 
    Muito em breve, ele escolheria o corte. Ou a raiz. 
 
(Continua...) 
 
Conto: Odair José, Poeta Cacerense

Os Que Se Desfizeram - Capítulo 5 — O Que Não Suportava o Próprio Peso

    Ele nasceu leve. E aprendeu cedo que a leveza era uma bênção — porque os pesados eram punidos. Quem chorava, era mandado pro quarto. Quem gritava, perdia o afeto. Quem sonhava alto demais, caía. 
 
    Então ele se moldou. Sorria nos momentos certos. Tirava boas notas. E pedia desculpas até quando respirava alto demais. 
 
    Mas cada vez que engolia uma emoção, um de seus ossos enfraquecia. Não de forma literal — mas como quem perde alma no atrito da obediência. 
 
    Aos dezessete, tropeçou no meio da rua. Ouviu um estalo. Não era o tornozelo — era algo mais fundo. Um som que vinha de dentro, como vidro trincando. 
 
    Desde então, começou a rachar. Aos poucos. Primeiro a clavícula. Depois os pulsos. Depois o peito. 
 
    Ninguém via. Por fora, ainda era o mesmo garoto educado. Mas por dentro, era uma arquitetura de estilhaços. 
 
    Na floresta, ele já tinha aceitado. Não falava muito. Não tocava ninguém. Cada passo podia ser o último inteiro. 
 
    O chamavam de Vidro. Alguns o evitavam, por medo de quebrá-lo. Outros o veneravam — diziam que seus ossos, quando partidos, emitiam sons tão belos que faziam corvos dormirem em pleno voo. 
 
    Ele não gostava de nenhuma dessas reações. 
 
    Só queria que alguém o visse sem a moldura do trauma. 
 
    Elias o encontrou à beira de um lago raso, ajoelhado, tentando juntar cacos caídos da própria costela. 
 
    — Você precisa de ajuda? — perguntou Elias, ainda humano demais pra entender. 
 
    Vidro olhou devagar, como quem decide se um olhar vale o risco da quebra. 
 
    — Não. Mas talvez você precise. 
 
    Elias se sentou ao lado dele. Não falou mais. Apenas ficou em silêncio. 
 
    Minutos depois, Vidro tirou um fragmento de osso do peito. Brilhava como cristal sob a luz acinzentada da floresta. 
 
    Estendeu a Elias. 
 
    — Quando chegar a hora, coloca isso na boca. E morde. Vai doer. Mas você vai entender. 
 
    Elias pegou o fragmento com cuidado. Era lindo. E cortava. 
 
(Continua...) 
 
Conto: Odair José, Poeta Cacerense

Os Que Se Desfizeram - Capítulo 4 — A Que Brinca com o Tempo

    Ela aparece sempre de repente. Sem som, sem aviso. Como um pensamento indesejado. Como uma lembrança que não é sua. 
 
    Tem o corpo de uma criança de sete, mas o olhar de quem já morreu e voltou mais de uma vez. Chama-se Nula — não porque esse é seu nome, mas porque é o que resta quando todos os nomes falham. 
 
    Ninguém sabe de onde veio. Alguns dizem que ela se recusou a crescer. Outros, que nunca teve tempo para isso. 
 
    Mas a verdade? A verdade é que Nula não vive no tempo dos outros. 
 
    Às vezes, fala como uma anciã: voz grave, mãos trêmulas, lembranças que ninguém deveria carregar. Outras vezes, corre descalça entre os galhos rindo alto, como se o mundo nunca tivesse doído. 
 
    Ela não tem lar. Tem clareiras passageiras. Tem memórias que mudam de forma toda vez que tenta contá-las. 
 
    E foi numa dessas clareiras que encontrou Elias. 
 
    Ele ainda usava o manto costurado pela mulher que silencia. Caminhava com a agulha de osso na mão, como quem não sabe se aquilo é arma ou bússola. 
 
    Nula apareceu ao lado dele sem aviso. 
 
    — Você tá mais pesado do que devia — disse, com um galho na mão e os pés cobertos de lama. 
 
    — O que... — começou Elias, mas ela já não ouvia. 
 
    Estava brincando com uma borboleta preta que não tinha asas. Depois, parou. 
 
    Olhou pra ele com um olhar tão velho que doeu. 
 
    — Você ainda acha que vai voltar. Mas não vai. Nenhum de nós volta. 
 
    E então, riu. Aquele riso de criança que desmonta as paredes internas. 
 
    — Mas você também ainda não virou. Tá preso entre o homem e o que vem depois. 
 
    Elias quis perguntar “o que vem depois?”. Mas Nula já estava andando para trás, como quem volta no tempo com os próprios pés. 
 
    Antes de sumir entre as árvores, disse: 
 
    — Quando doer tanto que você esquecer seu nome, me chama. Eu ensino a brincar com o que sobrar. 
 
(Continua...) 
 
Conto: Odair José, Poeta Cacerense

Os Que Se Desfizeram - Capítulo 3 — O Que Vomita Palavras Mortas

    Ele tinha nome, um dia. Também tinha púlpito, microfone, aplausos. As pessoas vinham de longe para ouvi-lo falar. E ele falava. Falava com a voz da certeza, da moral, da verdade embalada e vendida como pão quente. 
 
    Era amado. Era temido. Era seguido. 
 
    Mas um dia, no meio de um sermão sobre retidão, ele engasgou. Não com saliva. Com uma palavra. 
 
    A palavra era “salvação”. Ela se recusou a sair. 
 
    Abriu a boca para repeti-la, mas em vez disso, o que saiu foi um som estranho — antigo, visceral, como se um idioma esquecido estivesse acordando em sua garganta. 
 
    As pessoas riram, nervosas. Depois, se calaram. E ele não parou. 
 
    Daquela noite em diante, não conseguiu mais dizer frases comuns. Tudo que saía de sua boca eram pedaços de poema, trechos de línguas mortas, gritos em forma de flor, risos que sangravam. 
 
    Foi expulso. Da igreja, da cidade, da própria família. 
 
    Começou a andar pelas estradas, murmurando seus fragmentos. Dizem que quem o ouve demais começa a duvidar de tudo: do tempo, da identidade, da necessidade de continuar sendo humano. 
 
    Na floresta, ele achou lar. Ou ela o achou — ninguém sabe bem. 
 
    Foi ali que encontrou Elias. 
 
    Estava sentado em cima de uma pedra que parecia um altar tombado, cercado por folhas que tremiam sem vento. 
 
    Elias se aproximou. O Pregador o olhou com olhos como túmulos — fundos, cheios de ecos. 
 
    “Você chegou tarde demais para ser salvo,” ele disse. Ou talvez tenha dito outra coisa. As palavras vieram num som quebrado, mas Elias entendeu. 
 
    Sentou-se ao lado dele. E, pela primeira vez, quis falar também. 
 
    Mas só saiu um sopro. O início de um novo idioma. 
 
(Continua...) 
 
Conto: Odair José, Poeta Cacerense

Os Que Se Desfizeram - Capítulo 2 — A Que Costura o Invisível

    Ela não fala. Não porque não pode. Porque aprendeu que algumas verdades não cabem em palavras. E toda vez que tentava nomear o que sentia, uma parte de si morria um pouco. 
 
    Agora, prefere o fio. 
 
    Costura mantos com o que os outros deixam para trás: frases engolidas, memórias negadas, pedaços de pele emocional. Cada ponto é um silêncio aceito. Cada dobra, uma dor acolhida. 
 
    Seu ateliê é feito de matéria estranha — galhos que se curvam como agulhas, folhas que lembram papéis queimados, e uma luz morna que nunca tem fonte. 
 
    Às vezes, chegam novos. Cambaleantes, assustados, ainda com cheiro de gente normal. Ela os vê antes mesmo que atravessem a fronteira. Sente o ar tremular — como quando um raio se aproxima, mas ainda não caiu. 
 
    Naquela manhã, ela sentiu Elias. 
 
    Vinha partido por dentro. Com os olhos cheios de perguntas e os passos carregados de negação. Mas havia nele uma abertura — uma fenda onde o som do outro lado já sussurrava. 
 
    Ele entrou na clareira com a alma em desordem. Ela o olhou. Ele não disse nada. 
 
    Bom sinal. 
 
    Sentou-se, sem saber por quê. Ela trouxe um tecido translúcido — feito de silêncio antigo — e começou a costurar algo sobre seus ombros. Ele sentiu o calor. Sentiu também o choro que nunca chorou escorrendo, sem lágrimas, pela espinha. 
 
    “Quem é você?”, ele quis perguntar. Mas sua boca não se moveu. 
 
    Ela respondeu mesmo assim — com os dedos, com o fio, com o cheiro do ar. “Sou aquela que veste os que se desfazem.” 
 
    Naquela noite, Elias dormiu sob o manto costurado com suas próprias ausências. E sonhou que era feito de vento. E terra. E coisa nenhuma. 
 
    Quando acordou, a Costureira já não estava. Mas em seu colo, deixara uma agulha feita de osso. 
 
(Continua...) 
 
Conto: Odair José, Poeta Cacerense

Os Que Se Desfizeram - Capítulo 1 — O Som Que Não Se Deve Ouvir

    Durante o dia, Elias era exemplar. 
 
    Cabelos sempre aparados, camisa passada, frases breves, voz controlada. Chegava pontualmente ao trabalho, digitava relatórios com precisão cirúrgica, evitava assuntos polêmicos no almoço. Ele existia como se pedisse desculpas. Vivia como se pisasse em gelo fino — mesmo quando não havia ninguém olhando. 
 
    Às vezes, no entanto, no silêncio entre um clique de teclado e outro, ele ouvia. Um som. Baixo, dissonante, impossível de descrever. Não era voz, não era ruído. Era... outra coisa. Como se o mundo tivesse uma rachadura por onde vazava algo não traduzível. 
 
    Ele tentava ignorar. 
 
    Tomava mais café. Passava mais tempo em reuniões. Comprava coisas que não precisava. Apagava pensamentos com séries de episódios infinitos. 
 
    Mas o som voltava. Sempre mais perto. Às vezes vibrava atrás dos olhos. Às vezes parecia sair do peito. 
 
    Um dia, no elevador, enquanto observava seu reflexo imóvel ao lado de outros reflexos imóveis, o som ficou alto demais. Elias desceu dois andares antes do seu. Andou até a saída de emergência. Abriu a porta. Desceu as escadas sem saber por quê. 
 
    Saiu à rua. E não voltou. 
 
    Na primeira noite fora, dormiu num banco de praça. Na segunda, sob uma marquise abandonada. No terceiro dia, parou de contar. 
 
    Começou a ver coisas — ou talvez a notar o que sempre esteve lá. Pessoas com olhos ausentes. Silêncios espessos entre frases. Rostos que, quando fixados por mais de três segundos, começavam a derreter — não fisicamente, mas em significado. 
 
    E então, no quinto dia, sonhou com ela. A floresta. 
 
    Não era verde. Não era real. Mas havia um chamado, como se cada folha sussurrasse seu nome antigo — um nome que ele nunca disse em voz alta. 
 
    Acordou com lama nos pés. 
 
    Mesmo em pleno asfalto. 
 
(Continua...) 
 
Conto: Odair José, Poeta Cacerense

domingo, 13 de abril de 2025

O Grande Encontro - (Hamurabi, Genghis Khan, Napoleão e Dom Pedro I)

[Cenário: Um salão atemporal, em um plano fora do tempo e do espaço. O chão é de mármore branco, o teto é um céu estrelado que se move lentamente. Ao redor de uma mesa redonda, sentam-se quatro figuras imponentes: Hamurabi, Genghis Khan, Napoleão Bonaparte e Dom Pedro I.] 
 
Hamurabi (com voz grave e pausada, seu rosto sereno como uma estátua): 
 
— Senhores, saudações. É curioso nos encontrarmos além da areia do tempo. Eu fui o primeiro a colocar a justiça em pedra. Meu código foi o alicerce de leis por milênios. A civilização precisa de ordem. 
 
Genghis Khan (sorri com ferocidade, sua armadura ainda marcada por batalhas): 
 
— Justiça é boa... mas é o poder que molda o mundo. Eu uni tribos, criei o maior império contínuo da Terra com ferro e cavalgadas. Onde meu cavalo pisou, novas rotas e culturas nasceram. Meu legado é movimento. 
 
Napoleão (com um leve deboche francês, ajeita a gola do uniforme): 
 
— Interessante. Eu também reescrevi fronteiras. Transformei a Europa com ideias e canhões. Levei os ideais da Revolução com a espada. E até hoje se estuda meu Código Civil — que, com licença, Hamurabi, tem um toque mais refinado. 
 
Dom Pedro I (ergue a taça, em pose de orador dramático): 
 
— Ah, meus senhores! Eu proclamei a independência de um império tropical com espada em punho e poesia no coração! Trouxe liberdade a um povo sem mergulhá-lo em rios de sangue. "Independência ou Morte", lembram? Meu grito ainda ecoa! 
 
Hamurabi (inclinando a cabeça): 
 
— A independência sem justiça seria caos. A lei sustenta o império, não a espada. 
 
Genghis Khan (bate a mão na mesa, firme): 
 
— Mas sem a espada, não há império a sustentar! A conquista é o ventre da civilização. 
 
Napoleão (sorri de canto): 
 
— E sem ideias, senhores, tudo isso ruiria. Conquistas e códigos são nada sem uma visão. 
 
Dom Pedro I (com um riso leve): 
 
— Então brindemos ao que somos: o conquistador, o legislador, o imperador das ideias e o libertador do Novo Mundo. 
 
[Todos levantam taças que surgem magicamente diante deles, brindando em um gesto solene que ecoa pelo tempo.] 
 
Hamurabi: 
 
— Que nossos legados sejam lembrados não só pelo que fizemos... mas pelo que inspiramos. 
 
Genghis Khan: 
 
— E que os ventos da história nunca parem de soprar. 
 
Napoleão: 
 
— Que o mundo continue girando sob nossos nomes. 
 
Dom Pedro I: 
 
— E que o futuro saiba que a história também tem alma. 
 
[Silêncio. O salão se desvanece, mas as palavras continuam ressoando como ecos na eternidade.]
 
 
Peça teatral: Odair José, Poeta Cacerense
Imagem: Criada pela IA

sábado, 12 de abril de 2025

Sarah e a Cidade Sem Palavras

    Sarah tinha 16 anos e um mundo inteiro dentro da mochila. Livros de capa dura, brochuras com páginas amareladas, contos de dragões e piratas, romances de outros séculos... tudo isso era seu tesouro. Ela amava a leitura como outros amam o sol: era seu alimento e seu refúgio. Seu lugar favorito no mundo era a Biblioteca Municipal, um prédio antigo com janelas compridas e cheiro de papel envelhecido. 
 
    Em uma tarde chuvosa, depois da escola, Sarah decidiu visitar a sala de livros raros, um lugar pouco frequentado até mesmo pelos bibliotecários. Enquanto caminhava pelos corredores, ouviu um leve zumbido vindo de uma porta entreaberta ao fundo, uma que ela nunca tinha reparado antes. Curiosa, empurrou com cuidado e entrou. 
 
    Assim que cruzou o limiar, sentiu o chão desaparecer sob seus pés. 
 
    Ela acordou em uma praça estranha, cercada por prédios baixos e modernos, mas tudo ali parecia... artificial. As pessoas andavam de maneira apressada, com pequenos dispositivos reluzentes presos ao pulso, e nenhuma delas carregava um livro, revista ou sequer um papel de bala com palavras. 
 
    A jovem procurou por uma biblioteca, uma livraria, qualquer coisa. Nada. Ao perguntar a um senhor onde ficava a biblioteca mais próxima, ele franziu a testa e perguntou: 
 
    "Biblioteca? O que é isso?" 
 
    Sarah ficou pálida. Ninguém naquela cidade conhecia os livros. Ninguém lia. Tudo era transmitido diretamente para a mente por dispositivos – imagens, sons, comandos. A linguagem escrita havia sido esquecida, considerada "obsoleta". 
 
    Determinada, Sarah se recusou a aceitar aquele mundo sem histórias. Começou a desenhar letras no chão, nas paredes, em papéis que ela mesma fabricava com restos de materiais que encontrava. Aos poucos, algumas crianças começaram a se interessar. 
 
    "O que é isso?" — perguntavam, fascinadas ao vê-la copiar frases dos livros que lembrava de cor. 
 
    Ela ensinava o alfabeto como quem oferece magia. Escreveu um conto curto em uma parede: “Era uma vez uma menina que descobriu outro mundo através de uma porta escondida...” As pessoas passavam e liam, sem entender direito, mas algo despertava nelas. 
 
    Logo, ela atraiu atenção. A “Reprogramação Central” viu aquilo como uma ameaça ao sistema. Sarah foi convocada por autoridades que a advertiram: 
 
    "As histórias causam emoções desnecessárias. Desejos. Conflitos. Não podemos permitir isso." 
 
    Mas Sarah não recuou. 
 
    Antes que pudessem apagar tudo que ela havia escrito, as crianças da cidade — já apaixonadas pelas palavras — começaram a proteger seus “livros de parede”, copiando e espalhando os textos. Era impossível parar. A chama havia sido acesa. 
 
    Numa noite, enquanto observava a lua, Sarah sentiu o mesmo zumbido da porta da biblioteca. Um brilho surgiu no chão ao seu redor. Ela entendeu: a porta estava se abrindo de novo. 
 
    Antes de partir, escreveu sua última frase num muro alto da praça central: 
 
    “Os livros não são feitos de papel. São feitos de mundos. E onde houver alguém disposto a imaginar, eles existirão.” 
 
    Sarah acordou deitada no chão da sala de livros raros. Ao seu redor, tudo estava igual, mas dentro dela algo havia mudado. Ou melhor: renascido mais forte. 
 
    Ela começou a escrever. Não apenas para si, mas para os outros. Contou tudo o que viveu naquele lugar estranho, onde os livros não existiam. Seu relato virou um livro. 
 
    E esse livro... você pode encontrar hoje na prateleira da sala de literatura fantástica da Biblioteca Municipal, com um aviso especial na capa: 
 
    “Este livro pode conter portas para outros mundos.” 
 
Conto: Odair José, Poeta Cacerense

terça-feira, 8 de abril de 2025

A maldição de Betel

    O céu sobre Betel estava doente. 
 
    Nuvens giravam em espirais estranhas, como se uma mão invisível as estivesse moldando por trás do véu da realidade. E no centro da estrada poeirenta, caminhava Eliseu, recém-saído de Jericó, onde as águas haviam sido curadas — mas não o mundo. 
 
    Ele carregava mais que a unção de Elias. Carregava algo herdado na travessia dos céus, quando vira a carruagem de fogo. Desde então, ouvia murmúrios no vento, e seus sonhos estavam cheios de vozes que não eram humanas — antigas, vastas, e indiferentes. 
 
    Foi então que surgiram os jovens. Um grupo de quarenta e dois, vindos da cidade, armados de escárnio e olhos vazios. Suas vozes cortaram o ar: 
 
    — Sobe, careca! Vai-te, calvo! 
 
    Mas o insulto não era só contra um homem. Era contra o que falava através dele. E aquilo ouviu. 
 
    Eliseu parou. 
 
    O ar ao seu redor se adensou, como se o tempo hesitasse. Ele ergueu os olhos, que agora não brilhavam com ira — mas com um brilho que lembrava o espaço entre as estrelas. Quando falou, sua voz não era apenas dele: 
 
    — Em nome d’Aquele Que Não Pode Ser Nomeado... vocês foram vistos. 
 
    As palavras reverberaram na terra como um sino de mármore. Então a floresta se abriu — não por entre as árvores, mas entre os planos da realidade. 
 
    Duas formas surgiram. Ursas, mas não exatamente. Seus olhos eram buracos que sugavam a luz, seus corpos tremiam como reflexos numa água que não existe. Elas avançaram com lentidão ritual, como sacerdotisas de um culto antigo. E então veio a fome. 
 
    Gritos. Não apenas de dor — de reconhecimento. Os jovens viam, no momento da morte, algo que sempre souberam, mas jamais ousaram lembrar. E o terror que os consumiu era maior do que as garras ou os dentes. 
 
    Quando tudo cessou, a estrada estava silenciosa. Só o profeta restava, caminhando entre os corpos como uma sombra lançada por outra dimensão. 
 
    Ao longe, o céu girava ainda — como o olho de um deus que acabara de piscar. 
 
Conto: Odair José, Poeta Cacerense

domingo, 6 de abril de 2025

Quatro voltas para a eternidade

    Era um domingo de sol ameno, daquele tipo que parece ter sido encomendado só pra fazer a gente lembrar dele com carinho décadas depois. Fazia parte do encanto dos anos 90, uma época em que a gente corria mais descalço do que calçado, e onde a pista de terra batida da escola era o nosso estádio olímpico. 
 
    Lembro como se fosse hoje. A cidade toda parecia estar lá. A arquibancada improvisada de madeira estalava sob o peso da torcida — pais, mães, irmãos, tios e curiosos. Uns vendiam picolés de groselha, outros subiam em árvores pra ver melhor. Aquele tipo de aglomeração que só um evento importante trazia pra cidade: a final da corrida de revezamento 4 x 4. 
 
    A gente era só moleque, mas naquele dia... naquele dia, éramos lenda. 
 
    Nos chamavam de tudo quanto é apelido. Eu era o Pernão, por motivos óbvios — tinha as pernas mais compridas da escola e corria como um louco atrás do vento. O Pescoço era alto e magrelo, parecia um galho de coqueiro, mas tinha resistência de maratonista (e também não tinha pescoço). O Matador não tinha piedade: quando pegava o bastão, era como se a pista fosse dele e o tempo fosse inimigo. E o Piti, ah… o menorzinho do grupo, mas com um coração que parecia maior que todos nós juntos. Era rápido, valente e tinha uma explosão que deixava todo mundo de queixo caído. 
 
    A gente treinava escondido, no campinho de trás da escola, usando um cabo de vassoura cortado no meio como bastão. Tínhamos a nossa própria coreografia de passadas e gritos de incentivo. Ninguém dava muito por nós. Mas a gente sabia… sabíamos o que tínhamos. 
 
    Quando chegou a hora, fiquei com a primeira perna da corrida. As outras equipes estavam alinhadas. Os olhos do público, os gritos, o cheiro de barro seco misturado com pipoca… tudo pareceu sumir por um instante. Só ouvi o apito. E corri. 
 
    Corri como se fosse o último domingo da minha vida. 
 
    Senti o vento bater no rosto e o mundo passar em borrões. Entreguei o bastão pro Pescoço com o coração batendo na boca. Ele voou. Não corria — flutuava. Passou um, dois competidores, e já estávamos na frente. 
 
    O Matador gritou antes de pegar o bastão. Era a sua marca registrada, um rugido que gelava os adversários. Correu como quem foge do próprio passado. Firme, decidido, feroz. 
 
    E então veio o Piti. 
 
    O menorzinho da equipe, o mais desacreditado. Quando recebeu o bastão, a vantagem era pequena, e atrás vinha o time dos garotos da outra escola — os "favoritos", com seus tênis novos e uniforme passado a ferro. Mas o Piti não ligava pra isso. Ele correu como se carregasse os sonhos de todos nós nas mãos. 
 
    E talvez carregasse mesmo. 
 
    O último trecho foi uma eternidade. Eu lembro de gritar tanto que fiquei rouco por dois dias. Todo mundo na arquibancada de pé, gente pulando, jogando boné pro alto, gritando o nome do Piti como se fosse de jogador profissional. Ele cruzou a linha de chegada com o peito estufado e um sorriso que não cabia no rosto. 
 
    A vitória foi nossa. 
 
    Não teve pódio, nem medalha de ouro reluzente, mas aquilo… aquilo foi maior. A gente se abraçou, suados, ofegantes, quase sem acreditar. Choramos. Sim, choramos mesmo sendo “durões”. Era alegria demais pra guardar só no peito. 
 
    Hoje, sentado na varanda, com os joelhos estalando e os dias passando mais devagar, ainda escuto aqueles gritos. Ainda vejo o bastão voando de mão em mão, a poeira subindo, o sol iluminando nossos rostos jovens e sonhadores. 
 
    A corrida passou. Mas aquela vitória, meu amigo… aquela ficou. 
 
Conto: Odair José, Poeta Cacerense 
 
Obs. Em memória do nosso amigo Piti (In Memoriam)