sexta-feira, 15 de agosto de 2025

A Sombra do Sobrado

    No final da Rua Coronel José Dulce, um sobrado de janelas azuis guarda mais que poeira e silêncio. Dona Laurinda, sentada na varanda com sua cuia de tereré, jura que, à noite, vê sombras atravessarem os cômodos — não de gente viva, mas de gente que viveu. 
 
    Turistas passam, fotografam, comentam sobre a arquitetura colonial e seguem sem saber que aquele sobrado já abrigou festas de carnaval regadas a polca paraguaia e serenatas que varavam a madrugada. Hoje, só o vento dança lá dentro, mas quem escuta com atenção ainda ouve um violão chorando, como se a cidade quisesse lembrar que a saudade também é patrimônio. 
 
Crônica: Odair José, Poeta Cacerense

quinta-feira, 7 de agosto de 2025

Meu coração é grande

    Cáceres, início dos anos 90. A Praça Duque de Caxias fervia no começo da noite, com as luzes amareladas dos postes e o cheiro de pastel vindo da barraca da esquina. Os bancos de madeira, ainda pintados de branco, era ponto de encontro de gente que queria ver e ser vista. No ar, um zunido distante de insetos e as primeiras batidas abafadas vindas do UBSSC — o clube onde, naquela época, qualquer festa parecia o evento do ano. 
 
    Geraldo, ou “Gê” para alguns, caminhava com o passo confiante de quem usava a farda com o mesmo cuidado que outros usavam perfume caro. Jovem militar, ele cultivava um sorriso fácil e um olhar que misturava charme e ousadia — qualidade ou defeito, dependendo de quem julgasse. 
 
    Naquela noite, recebeu um convite inesperado: "Aparece no UBSSC hoje, vai ser bom". O recado veio por um amigo, sem muito detalhe. E, como de costume, Gê não precisou pensar duas vezes. 
 
    O que ele não sabia é que o convite era parte de uma armadilha silenciosa. Havia semanas que Marisa, a morena de fala rápida que o chamava de “Anjo”, e Marinalva, a loira de riso tímido que carinhosamente o chamava de "Gê”, vinham trocando suspeitas. E, numa cidade onde segredo corre mais rápido que vento no rio Paraguai, as duas descobriram que ele não estava dividindo apenas o tempo… mas também o coração. 
 
    Quando Geraldo chegou à praça, não precisou procurar ninguém. Marisa e Marinalva estavam lá, lado a lado, braços cruzados, como duas estátuas prestes a ganhar vida. 
 
    — Boa noite… — arriscou ele, ainda com aquele sorriso que acreditava resolver qualquer mal-entendido. 
 
    — Gê… — disse Marinalva, com a voz dura. 
 
    — Anjo… — disse Marisa, mais fria ainda. 
 
    Ele sentiu o ar pesar. As pessoas nos bancos próximos começaram a prestar atenção, farejando drama como quem sente cheiro de chuva. 
 
    — Hoje você vai dizer — começou Marisa. — Com qual de nós você quer ficar. 
 
    — E qual de nós você ama de verdade — completou Marinalva. 
 
    Geraldo respirou fundo. A pausa foi calculada. O olhar dele percorreu o rosto das duas, como se fosse um rei prestes a decidir qual princesa escolher. Mas então, com aquele humor que sempre achou irresistível, deixou cair a frase que entraria para o folclore da praça: 
 
    — Meu coração é grande… cabe a duas. 
 
    Silêncio. E então, dois sons secos e quase simultâneos ecoaram pela praça: PÁ! PÁ! Um tapa de cada lado. 
 
    Geraldo ficou parado, a face ardendo e a vaidade amassada, enquanto as duas viravam as costas ao mesmo tempo, caminhando para lados opostos. 
 
    No banco próximo, alguém riu alto. No banco da esquina, um senhor comentou: 
 
    — Bem feito. Quem tem coração grande, que arrume também um rosto de ferro. 
 
    E assim, naquela noite, o “Gê” e o “Anjo” morreram… mas nasceu o Geraldo que pensaria duas vezes antes de tentar dançar com duas músicas ao mesmo tempo. 
 
Conto: Odair José, Poeta Cacerense

domingo, 3 de agosto de 2025

O que será que vimos?

    Não sei se foi um OVNI. Ela jura que sim. Eu digo que não, ou pelo menos, que não é tão simples assim. 
 
    Estávamos voltando para casa pela estrada de terra, depois de visitar a mãe dela no sítio. O céu estava limpo, mas pesado, como se a noite fosse mais espessa do que o normal. Eu dirigia devagar, faróis cortando a poeira que se levantava atrás do carro. Foi aí que ela pediu para eu parar. 
 
    — Olha. — disse, a mão tocando meu braço. 
 
    Acima das copas das árvores, havia uma luz. Não piscava como as de avião. Não tremia como as de torre de comunicação. Ela era firme, silenciosa, e... maior do que deveria ser. Eu fiquei ali, encostado no volante, tentando encaixar aquilo numa categoria conhecida: satélite, drone, estrela exagerada. Ela, não. Ela deu um passo para fora, no meio da estrada, o rosto virado para cima, olhos brilhando. 
 
    — Eles estão nos observando — murmurou, como se fosse uma revelação. 
 
    A luz começou a se mover. Primeiro devagar, depois numa aceleração impossível, desaparecendo atrás das nuvens como se tivesse sido engolida. O silêncio que ficou depois parecia mais pesado que o céu. 
 
    No caminho de volta, não falamos muito. Ela apertava minhas mãos de vez em quando, como quem compartilha um segredo. Já eu, tentava montar um mapa mental de trajetórias, velocidades, ângulos — qualquer coisa que pudesse explicar. 
 
    Em casa, ela ligou para a irmã e contou tudo. No relato dela, o objeto era metálico, oval, com uma luz pulsante no centro. Eu não vi nada disso, mas ela falava com tanta convicção que, por um instante, quase acreditei. 
 
    Agora, dias depois, ela continua dizendo que testemunhamos algo extraordinário. Eu continuo dizendo que foi só um fenômeno aéreo não identificado — e isso, para mim, não é a mesma coisa. 
 
    Talvez tenhamos visto a mesma luz, mas não o mesmo evento. Talvez nenhum de nós esteja errado. Ou talvez, no fundo, só exista uma verdade: às vezes, a realidade não é o que acontece no céu, mas o que cada um decide enxergar. 
 
Conto: Odair José, Poeta Cacerense

domingo, 27 de julho de 2025

O lugar onde eu moro

    Houve um tempo em que eu me evitava. 
 
    Sim, como quem cruza a rua para não ter de encarar alguém incômodo, eu me desviava de mim. Me ocupava de vozes alheias, de rotinas emprestadas, de expectativas que nem sabia de onde vinham — apenas as carregava, como se fossem parte da mobília da alma. 
 
    Mas um dia, o barulho do mundo cansou. Ou fui eu quem cansou de escutá-lo. 
 
    Então me sentei. Não porque quis, mas porque algo em mim desabou. Foi ali, entre as ruínas do que eu fingia ser, que me encontrei. Pela primeira vez, sem desculpas. 
 
    No começo, estranhei minha própria presença. Achei-me silencioso demais. Exigente. Incômodo até. Ficar comigo era como visitar um velho que se recusa a sorrir. 
 
    Mas insisti. Fui ficando. Como quem aprende uma língua nova, fui ouvindo meu próprio idioma interno — cheio de pausas, incoerências, dúvidas e pequenos espantos. Descobri que pensar com profundidade é uma forma de escutar. 
 
    E escutar a si mesmo é perigoso. Pode-se descobrir que se viveu mais para os outros do que para si. Pode-se perceber que o medo moldou mais decisões do que o desejo. Pode-se lembrar de sonhos enterrados com pressa. 
 
    Mas também — e isso é o que salva — pode-se descobrir que há em si um lugar que nunca foi invadido. Um quarto sem janelas, onde nenhuma crítica entrou. Um abrigo, onde a chama do ser ainda arde, tímida, mas intacta. 
 
    Hoje gosto de estar comigo. Não porque me acho pronto, bonito ou sábio — mas porque sou verdadeiro. Comigo, não preciso impressionar, competir, provar. 
 
    Comigo, eu apenas sou. E isso, descobri, é o que mais se aproxima da liberdade. 
 
Conto: Odair José, Poeta Cacerense

domingo, 20 de julho de 2025

O Velho Sábio

    Havia um homem que todos chamavam de velho Zué. Não se sabia ao certo sua idade, apenas que ele já estava ali antes das ruas serem asfaltadas e das janelas se trancarem com medo. Morava numa casa simples, com varanda azul desbotada, onde passava as tardes observando o tempo passar sem se apressar. 
 
    Os jovens da vila, quando o coração doía ou a cabeça pesava, vinham sentar-se ao seu lado. Zué não curava ninguém — só escutava e, às vezes, falava. E quando falava, era como quem planta sementes, não como quem dá ordens. 
 
    Certa tarde, um jovem ofegante subiu os degraus da varanda, frustrado com a vida, os outros, e até consigo mesmo. 
 
    — Zué… como é que o senhor vive assim… tão calmo, com tudo do lado de fora desmoronando? 
 
    O velho sorriu com os olhos e falou devagar, como quem atravessa um rio sem molhar o medo. 
 
    — Sente aí, rapaz… Vou te contar umas coisinhas que a vida me ensinou. Umas doídas, outras doces. Mas todas verdadeiras. Preste bem atenção e aprenda.
 
    Tirou o olhar do horizonte e olhou para o jovem a sua frente, suspirou fundo e começou: 
 
    Em primeiro lugar. “Nem tudo merece resposta.” — Já vi homem se perder por responder ofensa com grito. O silêncio, às vezes, ensina mais do que a raiva. Só fala com veneno quem tem medo de morrer esquecido. 
 
    Segundo. “Expectativa demais é sede com copo furado.” — Espera dos outros o que eles puderem dar. O resto, dá você mesmo pra sua alma. Se não der, ela seca. 
 
    Terceiro. “O que grita ‘urgente’ quase nunca é importante.” — Muita coisa só parece necessária porque o mundo corre como doido. Mas correr sem saber pra onde é só outra forma de se perder. 
 
    Em quarto lugar. “Tranquilidade não é um lugar sem barulho. É saber ouvir o barulho sem se perder nele.” — A calma que carrego não é falta de problema, não, menino. É treino de não deixar o problema sentar na minha cabeça. 
 
    Quinto. “Pouca coisa vale um aborrecimento inteiro.” — Já perdi noite de sono por bobagem. Hoje, se não for pra alimentar alma, deixo passar. Quem guarda tudo, envenena a própria carne. 
 
    Em sexto lugar. “Cuide do corpo — ele é o barco onde a mente navega.” — Um pouco de sol, comida quente, cochilo bom… parece pouco, mas sem isso, até pensamento vira pedra. 
 
    Sétimo. “A solidão, quando amiga, vale mais que mil conversas vazias.” — Estar só é ruim só pra quem tem medo do próprio silêncio. Aprende a conversar contigo… você vai se surpreender. 
 
    Em oitavo lugar. “Nem toda briga é tua. E isso é liberdade.” — Já entrei em guerra que nem era minha. Hoje, olho e penso: vale minha paz? Se não vale, deixo com Deus. 
 
    Nono. “Comparar é esquecer de viver a própria história.” — A vida do outro pode até parecer bonita… mas ninguém exibe cicatriz. Cuida da tua estrada. Ela é só tua. 
 
    E em décimo lugar. “Soltar é a arte de não morrer preso.” — Tem coisa que a gente precisa deixar ir: gente, dor, culpa, o que não foi. Soltar não é desistir… é abrir espaço pra respirar. 
 
    O jovem ficou quieto, olhando o pôr do sol escorrer entre as folhas. 
 
    — O senhor aprendeu tudo isso vivendo? 
 
    Zué soltou um riso leve. 
 
    — Não, meu filho… aprendi errando. A tranquilidade vem é depois da tempestade, quando a gente entende que algumas dores são só avisos. O segredo é não se apegar ao trovão. 
 
Conto: Odair José, Poeta Cacerense

quinta-feira, 17 de julho de 2025

O homem que aprendeu a ler e não lia

    Ele aprendeu a ler aos sete, como todos da sua turma. Fez o beabá, gaguejou as primeiras sílabas, destravou o mundo com a ponta dos olhos. A professora, emocionada, disse: “Você agora tem a chave do infinito.” Mas ele achou exagero. Preferia soltar pipa. 
 
    Cresceu. A leitura foi lhe exigida como escada para empregos, provas, manuais de instrução. Aprendeu a decifrar placas, contratos, receitas de bolo e promessas políticas. Lia como quem mastiga pedra — com esforço, sem prazer. Nunca entendeu os que choravam em romances ou sorriam com poemas. Para ele, livros eram caixas sem surpresa, sempre pesadas demais. 
 
    Na juventude, experimentou Camus por insistência de uma garota bonita. Leu uma página e bocejou. “Gente morta escrevendo tristeza, pra quê?”, resmungou. Voltou ao futebol. A garota partiu com um rapaz que recitava Drummond na praça. 
 
    Teve empregos, filhos, uma vida funcional. Sabia ler, lia o necessário — rótulos, extratos, mensagens de celular. Nunca passou de cinquenta páginas em livro algum. E se vangloriava disso, como quem sobreviveu a uma guerra sem jamais entrar nela. 
 
    Na velhice, uma tarde, ficou sozinho com a biblioteca herdada do irmão. Estantes inteiras. Pegou um exemplar de capa gasta: “Memórias Póstumas de Brás Cubas”. Abriu por abrir. Leu três linhas. Sentiu um incômodo. Leu mais três. A ironia o feriu como navalha. 
 
    Largou o livro. 
 
    Saiu para a varanda. Sentou-se. As árvores estavam imóveis. O vento também parecia calado. Pela primeira vez, teve a sensação de que havia vivido menos do que poderia. Não em tempo, mas em camadas. Como quem habita uma casa, mas nunca sobe as escadas. 
 
    Morreu alguns meses depois. Seus filhos venderam a biblioteca. Na lápide, escreveram: "Aqui jaz um homem de palavra." Mas as palavras, essas, ele nunca quis conhecer de verdade. 
 
Conto: Odair José, Poeta Cacerense

segunda-feira, 14 de julho de 2025

O leitor de si mesmo

    Encontrou a caixa por acaso, ao limpar o armário onde só guardava coisas que preferia esquecer. Ela estava ali, intacta, como uma armadilha. Nenhuma etiqueta, nenhum aviso. Apenas uma caixa de papelão, morna de poeira, pesada de memórias. 
 
    Abriu com um gesto lento, quase cerimonial. Dentro, os cadernos — aqueles de capa dura, alguns decorados com colagens, outros com frases sublinhadas com raiva. Os diários. Os testemunhos de um tempo em que viver doía, e escrever parecia cura. 
 
    Hesitou. Talvez fosse melhor fechá-los e manter a ficção de que nunca existiram. Mas a curiosidade tem sempre um pacto com o abismo. E então leu. 
 
    A primeira frase era uma tragédia em miniatura: "Hoje ela não olhou pra mim. Acho que vou morrer." 
 
    Riu. Mas a risada foi curta, engasgada. Havia algo ali. Algo que já tinha sido verdade. E a verdade, mesmo ridícula, nunca é inofensiva. 
 
    Passou as páginas como quem folheia os escombros de uma casa incendiada. Cada palavra tinha sido escrita com urgência, como se o mundo fosse acabar naquela manhã, naquela tarde, naquela ausência. E, de certo modo, havia mesmo acabado — várias vezes. 
 
    O que o desconcertava não era a ingenuidade. Era o excesso de significado. A forma como tudo — absolutamente tudo — era vivido com intensidade religiosa: um toque de mão, uma palavra atravessada, o barulho do coração quando alguém chamava seu nome. 
 
    Mas agora… Agora, aquele que escrevia estava morto. Ou, pelo menos, enterrado sob tantos outros que ele teve que se tornar para continuar existindo. 
 
    Foi então que a pergunta se formou, nítida: Quem era esse? O garoto que escrevia ou o homem que lia? 
 
    Porque o que lia julgava, zombava, tentava dissociar-se da dor alheia — mas o que escrevia sabia exatamente o que estava fazendo: tentava não desaparecer. 
 
    E foi aí que ele entendeu. Aquelas palavras estavam mortas, sim. Mas não por desgaste do tempo. Foram assassinadas. Por ele mesmo. Por esse leitor cético, cansado, que agora as contemplava com ar de superioridade. 
 
    Fechou o caderno. 
 
    Por um instante, quis pedir desculpas a si mesmo. Mas era tarde demais. A criança que escrevia ainda estava ali, presa nas entrelinhas, esperando ser salva. Mas o adulto não tinha mais as palavras certas. Só o silêncio. 
 
Conto: Odair José, Poeta Cacerense

domingo, 6 de julho de 2025

Entre o amor e a escrita

    Houve um tempo em que achei que poderia conciliar as duas paixões: a mulher e a escrita. Acreditei, tolo que sou, que seria possível amar com o corpo e com a pena, dividir os dias entre o colo de alguém e o silêncio necessário das ideias. Mas aprendi, com cada história interrompida, com cada adeus não tão poético quanto merecia, que a escrita é uma amante ciumenta — e, pior, silenciosa. 
 
    Dizem que o amor precisa de presença. E como explicar que meu corpo até está ali, no sofá, na cama, na mesa do café, mas que minha alma se encolhe num canto onde ela não pode entrar? Como traduzir que, mesmo de mãos dadas, estou revisando um verso, colhendo uma imagem, tentando encaixar o mundo inteiro em duas linhas? 
 
    Elas não entendem, e talvez eu também não soubesse explicar. Que o isolamento não é desinteresse, é necessidade. Que o sumiço não é desprezo, é imersão. Que, quando fecho a porta e deixo o mundo lá fora, não estou fugindo de ninguém — estou buscando algo que nem sei o nome. E isso dói. Mais nelas, que não escolheram conviver com fantasmas. Mais em mim, que escolhi. 
 
    A escrita pede tempo, silêncio e feridas abertas. Pede que eu pare no meio de um beijo porque me veio um verso. Que eu anote uma metáfora no guardanapo enquanto ela me conta algo importante. Que eu acorde de madrugada, não para abraçá-la, mas para anotar um sonho que talvez vire conto. A escrita tem dessas crueldades. 
 
    E há os poemas, claro. Ah, os poemas. Quase sempre escritos para outras — que não existem, ou que existiram só por um momento e ficaram eternizadas numa estrofe. E como dizer que o poema nunca é sobre quem pensa que é? Ou pior, que às vezes é, mas já foi, já passou, e agora só importa o efeito da palavra, não o passado que a gerou? 
 
    Já vi olhares de ciúmes para papéis. Já fui acusado de amar demais as letras e de menos quem estava ao meu lado. Já ouvi: “Você escreve coisas tão bonitas, mas não me escreve nada.” Como se o amor que ofereço pudesse ser mensurado em versos. Como se eu não tivesse entregado muito mais do que um poema — entregado a mim mesmo, inteiro, ainda que dividido. 
 
    A introspecção também pesa. O silêncio, os olhos vagando por dentro, as respostas dadas com um “hã?” que denuncia a viagem. Elas querem alguém inteiro no agora, e eu vivo metade no passado, metade no imaginário. Como amar alguém que só está aqui pela metade? 
 
    Às vezes, penso que serei sempre esse: o que ama e afasta. O que acolhe e se isola. O que escreve para entender o mundo, e no processo, se distancia dele. Não sei. Só sei que sigo escrevendo. Não por escolha, mas por condição. Porque se me tirarem isso, o silêncio me mata. E com ele, a última chance de amar, mesmo que seja de longe, mesmo que seja com palavras. 
 
    Talvez um dia eu encontre alguém que entenda. Que não tente competir com a escrita, mas caminhe ao lado dela. Que aceite perder-me para os poemas, desde que eu volte. E eu volto. Sempre volto. Mais calado, mais estranho, mais inteiro. E talvez, um pouco mais pronto para amar. 
 
Crônica: Odair José, Poeta Cacerense

quarta-feira, 2 de julho de 2025

A Onça no Daveron

    Era fim de tarde na Praia do Daveron quando o céu tingiu-se de dourado e as águas do Paraguai refletiam como um espelho trêmulo os últimos raios do sol. As crianças ainda brincavam entre os barquinhos ancorados, e os casais passeavam despreocupados, sentindo a brisa morna do rio. 
 
    Foi então que o silêncio caiu de repente, como uma onda invisível. Um pescador que enrolava suas redes parou com o gesto suspenso no ar. Um cachorro latiu e depois fugiu para trás dos quiosques. Alguém apontou para as dunas de areia úmida, perto da vegetação que avança desde o mato: 
 
    — Olha ali... 
 
    E lá estava ela. 
 
    Uma onça-pintada. 
 
    Não corria. Não se escondia. Caminhava com a elegância e o orgulho de quem sempre foi dona da terra. As patas deixavam marcas suaves na areia fina, como se desenhasse o seu nome antigo no chão. Ela olhou para as pessoas com um olhar calmo, quase pensativo. Não havia fome nem ameaça em seu corpo. Havia memória. 
 
    Alguns correram, outros apenas recuaram, boquiabertos. Mas ninguém ousou atirar pedras, ninguém gritou. Era como se todos sentissem — no fundo, bem no fundo — que aquele momento não era comum. Era um aviso. Um lembrete. 
 
    Dizem os mais velhos que o espírito da onça é o guardião dos caminhos da natureza. Que ela aparece quando os limites entre os mundos se tornam finos como véus. Que ela surge para lembrar que, mesmo na praia do lazer e dos turistas, o antigo ainda respira. 
 
    Ela parou diante do rio. Bebeu da água, sem pressa. Depois, com a mesma serenidade, virou-se para o mato e desapareceu entre as árvores como um sussurro. 
 
    No dia seguinte, só restaram as pegadas na areia, como se a noite tivesse esculpido um conto que o sol não conseguiu apagar. 
 
    E desde então, os moradores dizem que, ao cair da tarde, quando o vento muda e os pássaros se calam, é possível ouvir um leve rosnado vindo das margens. Como se a onça estivesse ali. Observando. Esperando. Lembrando. 
 
Conto: Odair José, Poeta Cacerense

domingo, 22 de junho de 2025

O antídoto à anestesia social

    Há um preço inevitável para quem escolhe despertar: o da incompreensão. Crescer, no sentido mais profundo e filosófico, é romper com a inércia das massas. É aceitar o fardo da liberdade e da responsabilidade pelo próprio pensamento. 
 
    Andar com aqueles que nos desafiam a crescer é, muitas vezes, caminhar à beira do abismo. São eles que nos obrigam a revisitar tudo o que tomamos como certo, a desmontar verdades herdadas e a encarar a vertigem de um mundo sem garantias absolutas. Eles não nos oferecem conforto. Oferecem conflito. Nos arrastam para o campo onde o eu precisa se reconstruir – fragmento por fragmento. 
 
    A ignorância coletiva, por sua vez, é um pacto silencioso de fuga. Uma suspensão consentida da angústia de existir. Ali, reina o riso fácil, a opinião não pensada, o senso comum embalado e pronto para consumo. É uma anestesia social. Um lugar onde ninguém é realmente responsável, porque todos preferem a segurança da obediência cega. 
 
    Tornar-se cúmplice disso é um ato de má-fé existencial. É trair o potencial de lucidez que habita em cada um de nós. É escolher o sono moral. A covardia intelectual. 
 
    Quem busca a autenticidade precisa aceitar o desconforto da dúvida, o peso de escolhas solitárias e a dor de ser, por vezes, estranho aos olhos alheios. Não há crescimento sem confronto. Não há lucidez sem ruptura. 
 
    Afinal, como já disse Nietzsche, “é preciso ter um caos dentro de si para dar à luz uma estrela dançante”
 
    Que cada passo, então, seja uma recusa consciente à cumplicidade com a ignorância. Que a vida seja sempre um exercício radical de liberdade. 
 
Reflexão: Odair José, Poeta Cacerense

sábado, 21 de junho de 2025

Pensar diferente

    O mundo já está cheio de vozes gritando, de opiniões jogadas ao vento, de discursos vazios repetidos como eco em corredor sem fim. Há barulho demais e pensamento de menos. O que realmente falta é gente que pare, respire fundo e pense. 
 
    Gente que não tenha medo do silêncio, porque é nele que nascem as ideias que realmente importam. Gente que questione o óbvio, que desconfie das verdades embaladas e prontas para consumo. Que saiba que concordar com tudo é fácil, mas entender de verdade exige coragem. 
 
    O mundo precisa de quem olhe ao redor e pergunte: “Por que fazemos assim? Precisa ser desse jeito? E se houver outro caminho?” Precisa de pessoas que não temam parecer diferentes, que não se preocupem em caber nas caixas pequenas que a sociedade adora construir. 
 
    Ser diferente não é rebeldia vazia, é resistência criativa. É escolha diária por não se acomodar. Não é sobre gritar mais alto que os outros, é sobre pensar mais fundo. 
 
    Porque, no final das contas, o que transforma o mundo não é o barulho… é o pensamento. É a pergunta certa feita no momento certo. É o silêncio que incomoda, mas que planta sementes de mudança. 
 
Pensamento: Odair José, Poeta Cacerense

O juramento

    Nas proximidades da cidade havia um morro que todos chamavam de Pedra Grande. Um pedaço de rocha esquecido entre mato e silêncio, mas para eles, era território sagrado. 
 
    Quatro adolescentes. Quatro histórias emboladas de risos, cicatrizes, e promessas mal planejadas. 
 
    Lucas era o líder improvisado, sempre com ideias que começavam com "E se a gente...?". Tainá era a voz da razão que, mesmo reclamando, nunca deixava de ir. Rafa, o contador de piadas ruins, fazia questão de transformar qualquer momento sério numa comédia de mau gosto. E Léo, o mais quieto, o que observava mais do que falava. 
 
    Naquela tarde de julho, o vento parecia um aviso. Já era quase noite quando eles chegaram no topo da Pedra Grande. Tinham levado refrigerante, um saco de salgadinhos e um gravador velho que Léo insistira em levar "para registrar o momento", mesmo que ninguém mais soubesse como funcionava aquilo direito. 
 
    Sentaram em roda, com as pernas cruzadas e a seriedade forçada que só adolescentes conseguem ter quando decidem fazer algo “para sempre”. 
 
    Lucas tirou do bolso uma faca sem ponta, dessas de passar manteiga. Com ela, arranhou as iniciais de cada um na pedra: L, T, R e outro L. 
 
    — A gente jura, aqui e agora — começou ele, com a solenidade de quem estava assinando um tratado de paz mundial — que, aconteça o que acontecer, a gente nunca vai esquecer um do outro. 
 
    — Mesmo se a gente brigar? — perguntou Rafa, rindo antes mesmo de ouvir a resposta. 
 
    — Mesmo se a gente se odiar — completou Tainá, com um sorriso triste, como quem já sabia que o tempo prega peças. 
 
    — Mesmo se um dia a gente nem se reconhecer mais — disse Léo, olhando o horizonte, como se já enxergasse os anos passando. 
 
    Então cada um pegou um pedaço de salgadinho, molharam no refrigerante (ideia de Rafa, claro) e comeram juntos, como se fosse um ritual tribal. Gravaram as vozes dizendo o juramento, e depois riram da própria idiotice. 
 
    Naquele momento, eram invencíveis. 
 
    Mas a vida… a vida é especialista em distâncias. 
 
    Veio o vestibular. Depois, empregos, mudanças de cidade, amores que entraram e saíram sem pedir licença. Vieram as ofensas mal resolvidas, os silêncios longos, as mensagens não respondidas. 
 
    Por um tempo, a Pedra Grande ficou lá, sozinha, assistindo outros adolescentes subirem, fazerem promessas novas, apagarem as antigas com o tempo e com a chuva. 
 
    Até que, anos depois, numa tarde parecida, os quatro voltaram. 
 
    Sem combinar, sem planejar. Como se o vento tivesse chamado cada um no ouvido. 
 
    Agora com rugas escondidas, olhares mais lentos e uma coleção de cicatrizes invisíveis. Sem a velha faca, sem o gravador, sem refrigerante. 
 
    Sentaram no mesmo lugar. Leram as iniciais gastas. 1Ninguém disse nada de imediato. 
 
    Até que Rafa, com a voz mais rouca, soltou: 
 
    — A gente prometeu, né? 
 
    E todos sorriram. Não era preciso dizer mais nada. 
 
Crônica: Odair José, Poeta Cacerense

sexta-feira, 13 de junho de 2025

Sangue na Fronteira

    Mato Grosso / Paraguai – 1866 – Batalha de Tuiuti 
 
    Assim que abriu os olhos, Artur foi atingido por um calor sufocante. O sol parecia pesar sobre a pele, e o ar estava carregado de um cheiro metálico de sangue e pólvora. Ao seu redor, um campo aberto de vegetação rasteira e banhados enlameados. O som de tambores, gritos de ordens e tiros ecoava de todos os lados. 
 
    Ele estava em Tuiuti, no território paraguaio, palco da maior e mais sangrenta batalha campal da história da América do Sul. 
 
    À sua esquerda, via as tropas brasileiras, argentinas e uruguaias — a Tríplice Aliança — em formação, preparando-se para o impacto. Muitos eram jovens mal treinados. Soldados de fardas azuis e cinzas, com os rostos cobertos de suor e lama. 
 
    Do outro lado, os paraguaios, sob o comando do determinado Marechal Solano López, avançavam com fúria. Eram milhares, com lanças, baionetas e a coragem de quem luta pela própria terra. 
 
    A artilharia rugia. A terra tremia. Artur viu cavalos tombando, soldados gritando por médicos, outros morrendo em silêncio com o olhar perdido para o céu. 
 
    Por entre a fumaça dos canhões, viu também a chegada das tropas de voluntários da pátria, brasileiros de diferentes cantos, inclusive do interior de Mato Grosso, lutando com bravura. 
 
    Ele caminhou por entre as linhas, ouvindo os relatos sussurrados: 
 
    — "Falta comida…" 
 
    — "Não temos munição suficiente…" 
 
    — "O solo bebeu mais sangue hoje do que chuva no último mês…" 
 
    Artur parou por um instante ao lado de um médico improvisado, que, com as mãos tremendo, tentava amputar uma perna sem anestesia. O grito do soldado ecoou como um lamento pelo continente inteiro. 
 
    Ao longe, viu a bandeira brasileira tremulando, cravada no meio da lama. 
 
    Quando o dia terminou, o cenário era de devastação total. Mais de 9 mil mortos em um só dia. Um massacre. 
 
    Artur sabia que a Guerra do Paraguai ainda continuaria por anos, arrastando-se até 1870, com fome, doenças e milhares de vidas perdidas. 
 
Conto: Odair José, Poeta Cacerense

Entre páginas e silêncio

    Havia um tempo em que os livros eram meu esconderijo favorito. Não que o mundo lá fora fosse insuportável, mas o de dentro — o das páginas amareladas, das palavras alinhadas como soldados de um exército gentil — era infinitamente mais fascinante. 
 
    Lembro-me da infância como se fosse um parágrafo bem escrito: cheia de imagens, sons e um silêncio confortável. Era ali, entre as estantes altas da biblioteca da escola ou nos cantos esquecidos do meu quarto, que eu encontrava o que os outros chamavam de “solidão”. Eu chamava de aventura. 
 
    Tinha algo de sagrado no ato de abrir um livro. Como se ao folhear suas páginas, eu estivesse mexendo em um relicário de vozes antigas. Algumas histórias falavam comigo de um jeito que nenhum adulto conseguia. Outras pareciam adormecer junto comigo, com a última frase lida ecoando no escuro como uma canção de ninar. 
 
    Hoje, passo os olhos pela estante com a mesma ternura de quem folheia um álbum de fotografias. Reconheço ali pedaços meus — o garoto que acreditava em dragões, o adolescente que se apaixonou por palavras difíceis, o adulto que ainda se emociona com finais tristes. 
 
    O curioso é que não sinto apenas saudade das histórias. Sinto saudade de quem eu era enquanto as lia. Do silêncio da tarde, do cheiro de papel velho, da sensação de estar em dois lugares ao mesmo tempo: aqui, e onde quer que a história me levasse. 
 
    Há livros que nunca mais reli, mas que vivem comigo como cicatrizes bonitas. Sei de cor certas frases, como se fossem promessas sussurradas por um velho amigo. Porque é isso que os livros são, no fim das contas: amigos de alma, guardiões de quem fomos e mensageiros de quem podemos ser. 
 
    Talvez a maior nostalgia de quem ama os livros seja essa: não da história em si, mas do tempo em que ler era a nossa maneira mais pura de existir. 
 
Crônica: Odair José, Poeta Cacerense

quarta-feira, 11 de junho de 2025

O Viajante da História I - O livro antigo

    O cheiro de papel envelhecido preenchia o ar como um perfume sagrado. Na penumbra da biblioteca, cercado por estantes altas e sombras espessas, o professor Artur Montenegro passava os dedos por lombadas gastas. Era seu ritual favorito nas manhãs frias: mergulhar entre os livros da velha casa colonial que herdara do avô, também historiador. 
 
    Aposentadoria era uma palavra que ainda lhe soava estranha. Depois de quarenta anos em salas de aula, ele não sabia ao certo quem seria sem o quadro-negro, os alunos, os debates apaixonados sobre os rumos da humanidade. 
 
    Naquela manhã, ao reorganizar uma das prateleiras esquecidas, seus dedos tropeçaram em um volume que não reconhecia: capa de couro gasta, sem título, sem autor. Apenas uma espiral dourada gravada no centro. 
 
    Ao abri-lo, as primeiras páginas continham ilustrações de antigos mapas, trechos manuscritos em uma caligrafia quase arcaica. Mas no centro do livro — curioso e fora de lugar — havia um conjunto de páginas amarelecidas completamente em branco. 
 
    Com o coração batendo forte, Artur pegou sua velha caneta-tinteiro e, quase sem pensar, escreveu: 
 
    "14 de julho de 1789 – Paris" 
 
    No instante seguinte, as letras desapareceram da folha. E a sala pareceu estremecer. O ar se comprimiu. Um redemoinho de vento e luz envolveu seu corpo. Quando os sentidos voltaram, ele estava de pé no meio de uma multidão... e, à frente, a Bastilha.
 
Continua...
 
Conto: Odair José, Poeta Cacerense

domingo, 8 de junho de 2025

Leia

    Leia. Porque cada página virada é um passo a mais rumo à liberdade. 
    Ler é enxergar com os olhos dos outros, sentir com corações distantes, viver mil vidas dentro da sua. 
    É aprender a pensar, a questionar, a imaginar o que ainda não existe. 
    Quem lê nunca está só — carrega mundos dentro de si. 
    E quanto mais se lê, mais se cresce. 
    A leitura é um caminho silencioso que leva à coragem, à empatia e ao despertar. 
    Não importa onde você esteja: um livro sempre pode te levar mais longe. 
 
Reflexão: Odair José, Poeta Cacerense

sábado, 7 de junho de 2025

O homem à beira do mundo

    O céu estava pálido, como se tivesse esquecido de ser azul. Ele caminhava há dias, sem rumo, por entre campos secos e árvores silenciosas. Ninguém o chamava pelo nome — talvez ele mesmo já o tivesse esquecido. 
 
    Sentou-se à beira de um abismo de pedras, onde o vento sussurrava verdades que os homens evitam ouvir. E ali, tão sozinho, algo dentro dele começou a falar. 
 
    — Tão sozinho... — murmurou, os olhos perdidos no horizonte. — Descubro que o eco é minha própria voz. E nela... há um mundo inteiro escondido. 
 
    A mão trêmula tocou o peito. Sentiu o coração. Não batia por ninguém, não esperava por ninguém. Apenas era. 
 
    — A solidão não é vácuo — ele pensou — mas ventre. Um lugar onde o que fui morre... e o que sou começa a respirar. 
 
    O silêncio era quase insuportável. Mas ele ficou. E, ficando, escutou. 
 
    — Quando o mundo se cala... — sussurrou como quem reza — me escuto. 
 
    Ali, naquele fim de caminho, descobriu: já não era um entre muitos. Era inteiro entre ecos. 8E mesmo sem saber o nome que o mundo lhe deu, encontrou um que servia melhor: Sobrevivente do próprio vazio. 
 
Conto: Odair José, Poeta Cacerense

sexta-feira, 6 de junho de 2025

Sob o olhar da figueira

    Era uma tarde abafada de setembro, daquelas em que o céu de Cáceres fica parado, como se observasse tudo com olhos antigos. A Unemat fervilhava com os estandes do evento acadêmico. Havia exposições, debates, oficinas. No pátio central, um velho pé de figueira estendia suas raízes como braços de um deus silencioso, oferecendo sombra e refúgio. 
 
    Lucas havia ido por obrigação. Estudante de Medicina, filho de uma família tradicional da capital, tinha o costume de não se misturar com os outros cursos — “besteira de humanas”, seu pai diria. Mas ali estava ele, esperando a palestra de um professor cubano sobre saúde pública. Enquanto isso, distraía-se com o celular, até ouvir uma voz firme e doce dizendo: 
 
    — Pode tirar os fones. Aqui embaixo da figueira é território de escuta. 
 
    Ele olhou, confuso. Diante dele, uma jovem de tranças longas, olhos atentos e sorriso atrevido. Trazia livros nos braços e vestia uma camiseta com os dizeres: “Educar é um ato de amor e coragem.” 
 
    — Desculpa? — ele perguntou, tirando um fone do ouvido. 
 
    — Estou só brincando. É que essa figueira é um marco pros calouros da Pedagogia. A gente se reúne aqui desde sempre. Costuma ser um bom lugar pra ouvir histórias, sabe? 
 
    Lucas sorriu, meio sem jeito. Algo na presença dela desarmava seu tédio. 
 
    — Sou o Lucas. 
 
    — Eu sou a Ana Clara. Terceiro semestre de Pedagogia. E você? 
 
    — Medicina. Primeiro ano. 
 
    — Hum... futuro doutor. Já salvou alguma vida ou ainda tá apanhando da bioquímica? 
 
    Ele riu, relaxando pela primeira vez em dias. 
 
    — Apanhando, com certeza. Mas e você? Já alfabetizou o mundo? 
 
    — Ainda não. Mas aprendi que a escuta vem antes da letra. E que o amor ensina mais do que o medo. 
 
    Ficaram conversando por horas, entre piadas e confissões. Ana Clara falava com paixão sobre Paulo Freire, sobre sua mãe empregada doméstica que sempre sonhou que a filha tivesse “um nome na porta”. Lucas escutava, encantado. Pela primeira vez, alguém o fazia sentir pequeno de um jeito bom — não diminuído, mas ampliado. 
 
    Ele não contou de imediato que vinha de uma família onde o racismo era sussurrado em jantares elegantes. Nem que sua mãe torceria o nariz se o visse ali, sob a figueira, rindo com uma garota negra e cotista. 
 
    Mas voltou no dia seguinte. 
 
    E no outro. 
 
    Sempre sob o mesmo figueiral. 
 
    Ana Clara começou a escrever poemas sobre encontros impossíveis que, mesmo assim, aconteciam. Lucas começou a se interessar por saúde coletiva, por políticas públicas, por coisas que antes ignorava. Ela o ensinava a olhar. Ele aprendia a desaprender. 
 
    Foi num fim de tarde, quando o sol desenhava rendas no chão através das folhas da figueira, que ele a beijou pela primeira vez. Sem pressa, sem certeza. Apenas o toque de dois mundos que, por um instante, se tornavam um só. 
 
    O romance deles não foi fácil. Havia olhares atravessados nos corredores. Amizades desfeitas. Comentários maldosos disfarçados de brincadeira. Mas também havia cartas, cafés compartilhados, livros trocados e uma certeza silenciosa que crescia como raiz: algo ali era verdadeiro. 
 
    Certa vez, Ana Clara lhe disse: 
 
    — Amar você é como plantar semente em solo que disseram ser estéril. Mas olha... — e apontou para o broto de manjericão que cultivavam juntos — ...a gente desafia até a terra quando cuida com amor. 
 
    Anos depois, quando Lucas se formou e escolheu trabalhar no interior como médico da família, Ana Clara já lecionava numa escola pública e seguia com os pés firmes no chão e os olhos voltados para os sonhos. 
 
    O pé de figueira ainda estava lá. E sob sua sombra, dois jovens que ousaram amar além dos limites impostos — não por ingenuidade, mas por coragem — deixaram raízes que o tempo não apaga. 
 
    E a figueira escutava, como sempre, sem dizer uma palavra. 
 
Conto: Odair José, Poeta Cacerense

quarta-feira, 4 de junho de 2025

O voto das sombras

    Era um tempo em que os ipês floriam antes do previsto, como se a própria natureza estivesse inquieta. Cáceres dormia sob o calor pesado de setembro, quando se espalhou a notícia: o vereador Isidoro Martins sumira. 
 
    Homem miúdo, mas de fala mansa e olhos que pareciam sempre medir as palavras dos outros, Isidoro não era exatamente popular, mas era temido. Sabia demais. Sobre contratos, sobre desvios, sobre gente enterrando osso onde ninguém mais lembrava de procurar. E tinha um diário. Dizia-se que nele estavam guardadas verdades que jamais subiriam à tribuna. 
 
    Naquela semana, a Câmara Municipal se encheu de silêncios. Os colegas—alguns aliados, outros inimigos, todos cúmplices em alguma medida—passaram a andar com passos leves, como se cada estalo no assoalho antigo pudesse acordar fantasmas. O prefeito, tenso, convocou uma coletiva onde não disse nada. A população, por sua vez, fingia desinteresse, como quem já se acostumou a engolir mistérios junto com a poeira da seca. 
 
    Mas havia alguém que queria saber a verdade. Dona Belmira, a bibliotecária aposentada, mulher de poucas palavras e muitos cadernos, começou a investigar por conta própria. Ela conhecia Isidoro desde pequeno, e jurava que ele havia mudado nos últimos meses. Falava de ética como se fosse uma coisa possível. Andava pela cidade anotando nomes, lugares, placas. Como se se preparasse para algo. 
 
    Foi Belmira quem encontrou o diário. Estava escondido atrás da imagem de São Miguel Arcanjo, no altar da capela abandonada à beira do rio Paraguai. Folheou as páginas com dedos trêmulos. Ali, Isidoro escrevera tudo: acordos ilegais, caixas de campanha enterradas em galpões de fazendas, negociações com grileiros, desaparecimentos camuflados por relatórios forjados. 
 
    Mas havia também algo estranho nas últimas páginas. Um trecho repetido diversas vezes, como um mantra: 
 
    “O poder não corrompe. Ele revela. E aquilo que revela às vezes enlouquece quem vê.” 
 
    Nessa mesma noite, Belmira levou o diário ao jornal local. Mas o redator-chefe, velho amigo de infância de alguns dos citados, recusou-se a publicar. Na manhã seguinte, a casa de Belmira foi arrombada. Ela, no entanto, já tinha deixado cópias em três envelopes, entregues a alunos da escola técnica onde dava aulas voluntárias. 
 
    O conteúdo explodiu nas redes, foi parar em blogs, depois em rádios. Mas ninguém foi preso. Os acusados, um a um, apareceram na televisão dizendo que tudo era invenção, "um golpe de oportunistas", "fakenews". Isidoro nunca mais foi visto. Alguns dizem que fugiu para a Bolívia. Outros juram tê-lo visto caminhando pelo bairro Cavalhada ao entardecer, com um olhar que já não era deste mundo. 
 
    Dona Belmira? Passou a ser tratada como uma velha louca. Mas ela continua anotando. Observando. E diz uma coisa para quem ainda a escuta: 
 
    “Nem toda loucura é delírio. Às vezes, é só o que resta para quem viu demais.” 
 
Conto: Odair José, Poeta Cacerense