sábado, 31 de dezembro de 2022

Gracinha

    Vou lhes contar essa história, mas não quero que fiquem assombrados. Tem coisas que não sabemos bem como explicar. Ao final da história, que cada um tire suas próprias conclusões. Era o ano de 1929, o presidente do Brasil era Washington Luís e o Estado de Mato Grosso era governado pelo médico Mário Correia da Costa. Em Cáceres, o prefeito da época, Leopoldo Ambrósio Filho que tinha como meta principal a entrega do Palácio do Governo Municipal. Foi nesse ano que chegou na cidade o herói de nossa epopeia. Justino Pereira da Silva era um homem na casa dos 30 e poucos anos, rústico e muito trabalhador, veio para a cidade para trabalhar no encanamento da rede de água, que era construído pela firma Castrillon e Irmãos. Justino era bem sério. Homem de poucas palavras sempre se mantinha em silêncio, mesmo em meio a algazarra que seus companheiros de serviço costumava fazer. Foi em uma dessas suas andanças pelas ruas da cidade que ele a viu pela primeira vez. Gracinha. 

    Deixo o nosso herói aqui para falar da mocinha que ele avistou. Maria das Graças Oliveira era uma moça em seus 17 anos. Era muito bela e recatada como a maioria das moças da época. Todos na cidade a conhecia como Gracinha, apelido que ganhara quando ainda era bem pequena e que fazia justiça a sua beleza estonteante. Filha única de um dos maiores agricultores da região, morava com seus 5 irmãos em uma casa de alvenaria no centro da cidade e estava, agora empolgada pela chegada da água encanada. Naquele dia que já demonstrava ser de intenso calor, ela ouviu o barulho de um enxadão ou picareta e abriu a janela para ver. Foi quando seus olhos castanhos e amendoados viram Justino. 

    Durante todo o dia e a noite o homem não mais teve sossego. A beleza estonteante daquela moça não lhe saia da cabeça. Que sorriso ela tinha. Havia sido a primeira coisa que ela lhe mostrara ao vê-lo e lhe oferecer água. Não conseguia esquecer a imagem encantadora de seus olhos misteriosos naquele rosto angelical. Parecia uma deusa em forma humana. Esse era o seu pensamento. Nos próximos dias, ao cavar a rua próximo a casa dela, não suportava a ansiedade quando não a via. Mas, para sua felicidade, ela sempre aparecia, simpática, para lhe oferecer água ou um suco. 

    A jovem, por sua vez, não sabia o que estava acontecendo com ela. Por um instante, deitada em sua cama e com o olhar fixo no teto da casa, se perguntava o que era isso que estava sentindo. Um fogo queimava dentro de seu coração e percorria todo o seu corpo. Sem saber porque, não parava de pensar naquele homem. Mas, como isso era possível? O que tinha visto nele? E não podia pensar em outro homem. Afinal, o que iria dizer ao seu noivo? 

    É, meus nobres, existia um noivo. Ou pensaram que uma jovem linda como Gracinha não fosse comprometida? Havia cerca de seis meses que ficara noiva de Leonardo, jovem rico, filho de um médico da capital que havia a conhecido em uma festa na cidade. O pai do jovem, dias depois deles se conhecerem e trocarem algumas palavras, viera até a cidade e conversara com o pai dela. Por consentimento de ambos, ficaram noivos. A mãe da moça e suas amigas rasgavam elogios a formosura do rapaz e já imaginavam um casamento daqueles. Seria uma festa de parar toda a cidade. Algumas já até estavam olhando os vestidos e acessórios para a festividade. 

    O que é a felicidade? Escolhemos por quem nos apaixonamos? Essa era a pergunta que martelava a cabeça da moça quando, naquele final de semana, o seu noivo veio vê-la. Enquanto passeava com ele pelo jardim da pequena praça perto do rio, ela pensava no homem que trabalhava perto de sua casa. O que ele tinha de especial que a seduzira? Como podia explicar um sentimento desse? Ali ao seu lado, um jovem de futuro. Alguém que poderia dar-lhe uma vida confortável e um excelente pai para seus filhos. Então, por que não se sentia feliz com isso? 

    Seu coração quase saiu pela boca. Ficou, por alguns segundos petrificada ao vê-lo. Sim, ao caminhar pela praça naquele final de tarde, viu Justino sentado em um dos banquinhos da praça. Parecia estar pensando em alguma coisa. O olhar estático para o horizonte. Ela tentou dar meia volta. Não queria que ele a visse. O noivo notou a sua indecisão. "O que foi?" Indagou ele sem saber o que a fizera parar. "Não é nada!" Foi sua resposta na esperança de que o noivo não desconfiasse de nada. 

    Justino a viu. Seu coração disparou. Ela estava muito linda. Mas, estava acompanhada. Havia um jovem ao seu lado. Com certeza era seu noivo ou coisa assim, pensou na hora. Que bobeira a minha, continuou pensando consigo mesmo, pensar que essa moça seria para mim. Quem sou eu? Olhou para ela mais uma vez. Seus olhares se cruzaram. Ela ficou rubra e quase deu a perceber ao seu noivo. Desviou o olhar e continuou seu caminho. 

    Na manhã de segunda-feira, antes de dar a primeira enxadada no solo, a viu abrir a janela. Olhou para um e outro lado, ainda seus companheiros de trabalho não tinha chegado. Criou coragem e foi até a janela. Ela lhe entregou um bilhete. Sorriu e fechou a janela. No pequeno bilhete ela explicava que não sabia o porque mas não deixava de pensar nele e, se ele quisesse, os dois poderiam se encontrar naquela noite na rampa do Porto Mário Corrêa. 

    Tudo era perigoso. O pai da moça poderia encontrá-los e, sabendo de sua fama de homem rígido, Justino poderia ser morto. Gracinha, com certeza sofreria castigos severos. Não se pode macular a honra da família. Se alguém os visse naquele lugar, muitas coisas poderiam acontecer. Mas, nenhum perigo foi capaz de impedir o encontro dos dois. A moça não sabia explicar o que sentia, mas deixou-se envolver nos braços fortes daquele homem e sentiu uma força mágica tomar conta de seus desejos. Durante alguns dias, mantiveram outros encontros secretos no mesmo lugar. Justino, por sua vez, sabia que corria um risco enorme. Estava em um lugar que não conhecia. Poderia ser descoberto. Era mais velho e quem entenderia uma coisa dessa? 

    Como acontece na maioria das vezes, eles foram descobertos. O pai da moça, segundo alguns comentários da época, deu-lhe uma surra de chicote que foi preciso passar água de sal durante vários dias. Justino foi preso. Acusado de sedução e crime contra a honra, foi açoitado e jogado dentro de uma cela por vários dias. Conta-se que em uma dessas noites, depois de haver levado várias pancadas do agente carcerário, amigo do pai da moça, Justino olhou para a pequena grade e viu as estrelas no céu. Não se sabe mais nada a respeito dele. A história foi silenciada. 

    Alguns meses depois, a cidade presenciou um dos maiores casamentos de que se tem notícia. No altar, o Padre viu caminhar uma moça linda de olhos castanhos amendoados e ser entregue a um jovem que logo seria médico. Se foram felizes para sempre não sabemos. Nunca se sabe essas coisas. 

Conto: Odair José, Poeta Cacerense

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