domingo, 12 de outubro de 2025

O espelho que mentia em silêncio

    Ele despertou no fim de uma tarde imóvel. A luz atravessava a janela como uma lâmina cansada, cortando o ar em fragmentos de ouro morto. Diante dele, o espelho. Velho, manchado, quase vivo. 
 
    A princípio, viu-se como sempre — rosto, rugas, o cansaço das horas. Mas havia algo além. Um brilho no olhar que não era dele, um reflexo que o observava de volta, como se o tempo o espreitasse por dentro. 
 
    Aproximou-se. Os olhos que o fitavam pareciam carregar séculos, como se já tivessem visto nascer e morrer todas as mentiras. E então compreendeu: aqueles olhos eram os seus — apenas mais antigos, mais lúcidos, mais tristes. 
 
    O espelho não mentia. Era ele quem acreditava na mentira do tempo, quem vestira o disfarce dos dias para não encarar o próprio vazio. Ali, diante de si, viu a verdade que o tempo oculta: não há envelhecimento, apenas esquecimento. Não há futuro, apenas repetição. O tempo não anda — ele gira, e nos arrasta em seu engano. 
 
    Quando saiu, o espelho permaneceu em silêncio, como se soubesse que logo outro viria buscar nele a mesma ilusão. E os olhos do homem, agora abertos demais, já não sabiam se viam o mundo, ou se apenas o lembravam. 
 
Conto: Odair José, Poeta Cacerense