sexta-feira, 31 de outubro de 2025

O coração do impossível

    O devaneio nasce quando o silêncio respira e o mundo, por um instante, suspende sua ordem. É nesse intervalo que o desejo desperta, úmido e febril, buscando forma nas dobras da imaginação. Tudo o que foi contido começa a murmurar — lembranças, fantasias, promessas que nunca chegaram a ser palavras. O pensamento se curva, então, ao prazer do próprio delírio. 
 
    Entre a luz e o esquecimento, o devaneio ergue seu jardim secreto. As flores são desejos antigos, guardados como relíquias de uma vida sonhada. As sombras, tentações que nunca morreram de todo, apenas aprenderam a disfarçar-se de pensamento. Cada pétala é uma lembrança do que não se viveu; cada espinho, a lembrança do que se ousou desejar. 
 
    E assim o devaneio cresce, alimentado pelo perfume do impossível. Nele o corpo recorda o que a mente tentou esquecer — e o espírito, cansado da razão, se deita no colo do talvez. Não é fuga: é retorno. Retorno à primeira vertigem, ao instante em que querer era mais puro que possuir, e o proibido ainda não tinha nome. 
 
    No fundo, o devaneio é um espelho brumoso onde nos contemplamos sem disfarces. Ali se acumulam nossos desejos, nossas tentações, nossas pequenas mortes e renascimentos. E quando despertamos dele, um vestígio permanece: um brilho nos olhos, como se tivéssemos tocado — por um instante — o coração invisível do que jamais existiu. 
 
Pensamentos: Odair José, POeta Cacerense

terça-feira, 14 de outubro de 2025

O velho professor de História

    Eu me lembro bem daquele tempo — um tempo em que o sol parecia mais pesado, como se cada raio me empurrasse para dentro de mim mesmo. Eu tinha uns doze anos, talvez treze. A escola já não me dizia muita coisa. A casa estava sempre vazia. Minha mãe não estava lá e meu pai vivia mais no trabalho do que em casa. Apenas meu irmão menor me fazia companhia quando não estávamos brigados por alguma besteira. E eu, perdido no meio disso tudo, comecei a faltar às aulas. Primeiro um dia, depois outro. Até que parei de vez. 
 
    Meus colegas diziam que eu estava “cansado”, mas no fundo eu estava era fugindo. Do barulho, da saudade, do abandono. Eu acordava tarde, sentava debaixo da mangueira no quintal e ficava olhando as folhas se mexerem, como se o vento fosse o único que ainda me entendesse. Vez ou outra eu e meu irmão brincava de jogar bola. A bola, quase sempre, era feita de meias. 
 
    Foi numa dessas manhãs que ouvi um barulho diferente: uma bicicleta velha, freando em frente ao portão. Quando olhei, vi o professor Luiz descendo, com aquele jeito sério que ele tinha. Ele era o diretor da escola, e também dava aula de História — a única matéria que eu realmente gostava. 
 
    — Bom dia, rapaz — ele disse, encostando a bicicleta. — Sua professora me disse que você anda sumido. 
 
    Fiquei em silêncio. Não sabia o que dizer. 
 
    Ele pediu licença e veio se sentar comigo, ali mesmo, sob a mangueira. Ficamos um tempo calados, ouvindo o som dos galhos e o canto distante de um galo. Depois, ele falou: 
 
    — Sabe, eu também já pensei em largar tudo. Quando eu era novo, achava que estudar não servia para nada. Mas foi a História que me segurou. Descobrir que outros, antes de mim, também se perderam e encontraram o caminho... isso me deu força. 
 
    Olhei pra ele sem entender muito. 
 
    — A vida, meu rapaz — continuou —, é feita de idas e voltas. Às vezes a gente se perde para descobrir quem é. Mas se a gente não volta, o mundo continua andando sem nós. E, quando você resolve voltar, talvez já seja tarde. 
 
    Aquelas palavras ficaram presas em mim. Ele se levantou, enxugou a testa de suor e disse: 
 
    — Amanhã te espero na escola. Não precisa dizer nada agora. Só apareça. 
 
    E foi embora, pedalando devagar, deixando um rastro de poeira na rua de chão. 
 
    Naquela noite, não consegui dormir direito. Fiquei pensando em como ele podia ter tirado uma manhã para vir até ali, falar comigo. Ninguém fazia isso. No dia seguinte, acordei cedo, lavei o rosto e vesti a camisa da escola. Caminhei devagar até o portão, e pela primeira vez em muito tempo, senti vontade de continuar andando. 
 
    Voltei para a sala de aula. Os colegas me olharam como se eu fosse um fantasma. O professor Luiz apenas sorriu e me entregou um caderno novo. 
 
    — Escreva a sua própria história — ele disse. 
 
    Anos se passaram. Hoje, sou eu quem entra nas salas, quem observa nos olhos inquietos dos alunos aquele mesmo brilho que eu um dia perdi. Dou aulas de História — a mesma disciplina que me salvou — e, às vezes, quando um aluno some por uns dias, eu fico pensando se não precisa de algum tipo de ajuda. E, de alguma forma, tento ajudar.
 
    Sempre tem uma mangueira esperando. Sempre tem alguém precisando ouvir que ainda é tempo de voltar. Sempre é tempo de construir a própria história.
 
Conto: Odair José, Poeta Cacerense

domingo, 12 de outubro de 2025

O espelho que mentia em silêncio

    Ele despertou no fim de uma tarde imóvel. A luz atravessava a janela como uma lâmina cansada, cortando o ar em fragmentos de ouro morto. Diante dele, o espelho. Velho, manchado, quase vivo. 
 
    A princípio, viu-se como sempre — rosto, rugas, o cansaço das horas. Mas havia algo além. Um brilho no olhar que não era dele, um reflexo que o observava de volta, como se o tempo o espreitasse por dentro. 
 
    Aproximou-se. Os olhos que o fitavam pareciam carregar séculos, como se já tivessem visto nascer e morrer todas as mentiras. E então compreendeu: aqueles olhos eram os seus — apenas mais antigos, mais lúcidos, mais tristes. 
 
    O espelho não mentia. Era ele quem acreditava na mentira do tempo, quem vestira o disfarce dos dias para não encarar o próprio vazio. Ali, diante de si, viu a verdade que o tempo oculta: não há envelhecimento, apenas esquecimento. Não há futuro, apenas repetição. O tempo não anda — ele gira, e nos arrasta em seu engano. 
 
    Quando saiu, o espelho permaneceu em silêncio, como se soubesse que logo outro viria buscar nele a mesma ilusão. E os olhos do homem, agora abertos demais, já não sabiam se viam o mundo, ou se apenas o lembravam. 
 
Conto: Odair José, Poeta Cacerense