terça-feira, 14 de outubro de 2025

O velho professor de História

    Eu me lembro bem daquele tempo — um tempo em que o sol parecia mais pesado, como se cada raio me empurrasse para dentro de mim mesmo. Eu tinha uns doze anos, talvez treze. A escola já não me dizia muita coisa. A casa estava sempre vazia. Minha mãe não estava lá e meu pai vivia mais no trabalho do que em casa. Apenas meu irmão menor me fazia companhia quando não estávamos brigados por alguma besteira. E eu, perdido no meio disso tudo, comecei a faltar às aulas. Primeiro um dia, depois outro. Até que parei de vez. 
 
    Meus colegas diziam que eu estava “cansado”, mas no fundo eu estava era fugindo. Do barulho, da saudade, do abandono. Eu acordava tarde, sentava debaixo da mangueira no quintal e ficava olhando as folhas se mexerem, como se o vento fosse o único que ainda me entendesse. Vez ou outra eu e meu irmão brincava de jogar bola. A bola, quase sempre, era feita de meias. 
 
    Foi numa dessas manhãs que ouvi um barulho diferente: uma bicicleta velha, freando em frente ao portão. Quando olhei, vi o professor Luiz descendo, com aquele jeito sério que ele tinha. Ele era o diretor da escola, e também dava aula de História — a única matéria que eu realmente gostava. 
 
    — Bom dia, rapaz — ele disse, encostando a bicicleta. — Sua professora me disse que você anda sumido. 
 
    Fiquei em silêncio. Não sabia o que dizer. 
 
    Ele pediu licença e veio se sentar comigo, ali mesmo, sob a mangueira. Ficamos um tempo calados, ouvindo o som dos galhos e o canto distante de um galo. Depois, ele falou: 
 
    — Sabe, eu também já pensei em largar tudo. Quando eu era novo, achava que estudar não servia para nada. Mas foi a História que me segurou. Descobrir que outros, antes de mim, também se perderam e encontraram o caminho... isso me deu força. 
 
    Olhei pra ele sem entender muito. 
 
    — A vida, meu rapaz — continuou —, é feita de idas e voltas. Às vezes a gente se perde para descobrir quem é. Mas se a gente não volta, o mundo continua andando sem nós. E, quando você resolve voltar, talvez já seja tarde. 
 
    Aquelas palavras ficaram presas em mim. Ele se levantou, enxugou a testa de suor e disse: 
 
    — Amanhã te espero na escola. Não precisa dizer nada agora. Só apareça. 
 
    E foi embora, pedalando devagar, deixando um rastro de poeira na rua de chão. 
 
    Naquela noite, não consegui dormir direito. Fiquei pensando em como ele podia ter tirado uma manhã para vir até ali, falar comigo. Ninguém fazia isso. No dia seguinte, acordei cedo, lavei o rosto e vesti a camisa da escola. Caminhei devagar até o portão, e pela primeira vez em muito tempo, senti vontade de continuar andando. 
 
    Voltei para a sala de aula. Os colegas me olharam como se eu fosse um fantasma. O professor Luiz apenas sorriu e me entregou um caderno novo. 
 
    — Escreva a sua própria história — ele disse. 
 
    Anos se passaram. Hoje, sou eu quem entra nas salas, quem observa nos olhos inquietos dos alunos aquele mesmo brilho que eu um dia perdi. Dou aulas de História — a mesma disciplina que me salvou — e, às vezes, quando um aluno some por uns dias, eu fico pensando se não precisa de algum tipo de ajuda. E, de alguma forma, tento ajudar.
 
    Sempre tem uma mangueira esperando. Sempre tem alguém precisando ouvir que ainda é tempo de voltar. Sempre é tempo de construir a própria história.
 
Conto: Odair José, Poeta Cacerense

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