terça-feira, 11 de novembro de 2025

Aforismos sobre leitura

    1. Ler é atravessar o espelho sem quebrá-lo. É despir o mundo de suas leis e vestir o impossível. 
 
    2. Abro um livro e o tempo se curva. A realidade, tímida, espera do lado de fora da página. 
 
    3. Cada palavra é uma porta. Cada frase, uma travessia secreta — e ao final do parágrafo, já não sou o mesmo que começou a ler. 
 
    4. Ler é sonhar com os olhos acordados, é saborear o delírio sem precisar dormir. 
 
    5. No silêncio das letras, o mundo perde o peso. E eu, leve, fujo para onde ninguém me encontra — nem mesmo eu. 
 
    6. O livro é uma ferida que cicatriza por dentro. Quanto mais leio, mais me curo do real. 
 
    7. A leitura é um exílio voluntário. Mas lá, no país das páginas, sou rei, ou sombra, conforme o capítulo. 
 
Aforismos: Odair José, Poeta Cacerense

Ponto de partida

 
    O que pensamos e fazemos hoje cria o nosso amanhã. Cada ideia, emoção e escolha molda o caminho que iremos percorrer. A felicidade não está no futuro — ela começa agora, nos pensamentos que alimentamos. Se hoje cultivamos confiança, gratidão e amor, o amanhã refletirá essa mesma luz. O presente é o ponto de partida de tudo o que seremos. 
 
Pensamento: Odair José, Poeta Cacerense

sábado, 8 de novembro de 2025

As 7 pragas na Praça Barão (Parte 2) - As abelhas

    A semana passou como uma sombra que finge ser luz. Na segunda-feira, a prefeitura anunciou que tudo estava sob controle. “Um surto natural”, disseram. “Fenômeno isolado.” Mas quem passou pela Praça Barão naquela manhã sentiu o ar diferente — como se o vento evitasse tocar o chão. 
 
    Os garis lavaram o piso com jatos de água e cloro. O cheiro de formigas queimadas misturava-se ao perfume das árvores e à lembrança recente dos gritos. Mesmo assim, na sexta-feira seguinte, os bares voltaram a abrir. Porque o medo, quando não tem explicação, logo vira costume. 
 
    Entre as mesas, sentava-se Dra. Laura Nogueira, bióloga da universidade local. Ela observava o movimento enquanto tomava uma cerveja morna. Estava ali por curiosidade científica — ou talvez por inquietação. As amostras das formigas que recolhera não faziam sentido algum: espécies de regiões distintas, impossíveis de coexistirem, agindo como um só organismo. 
 
    Mas o que mais a perturbava era outra coisa. Nas lâminas de microscópio, entre os fragmentos, havia uma substância escura, viscosa — como se fosse sangue fossilizado. 
 
    Laura olhava para o chão da praça e imaginava raízes de carne, veias antigas pulsando sob os paralelepípedos. Ela não sabia explicar, mas sentia que aquilo não era apenas biologia. Era memória. 
 
    Pouco antes do pôr do sol, o padre Augusto se aproximou dela. Um homem alto, olhar cansado, conhecido pelos sermões sobre pecado e esquecimento. 
 
    — A senhora acredita em coincidências, doutora? — perguntou, com a voz rouca. 
 
    — Em ciência, padre, coincidência é apenas o nome que damos ao que ainda não entendemos. 
 
    Ele assentiu. 
 
    — Então a senhora entenderá logo. A segunda praga está a caminho. 
 
    Laura riu, mas o riso morreu antes de nascer. O ar, de repente, ficou espesso. O vento cessou. E um zumbido começou a crescer, distante, metálico — como se o céu estivesse se abrindo. 
 
    De repente, uma nuvem negra cobriu o entardecer. Abelhas. Milhares. Talvez milhões. 
 
    Elas desciam como uma chuva viva, grudando em cabelos, roupas, rostos. O som era ensurdecedor. As pessoas corriam, tropeçavam, batiam nas portas dos bares. O zumbido se tornava grito. 
 
    O padre agarrou Laura pelo braço e a arrastou para dentro da igreja em frente à praça. Fechou as portas. As janelas tremeram sob o impacto das abelhas. De fora, vinham gritos, orações, o som de copos quebrando e motores tentando fugir. 
 
    — Padre, o que é isso? — ela perguntou, apavorada. 
 
    Ele olhou para o crucifixo e respondeu baixo: 
 
    — No Êxodo, as pragas não vinham do céu nem da terra. Vinham da culpa dos homens. 
 
    Lá fora, o céu parecia arder. As abelhas atacavam sem razão, cegas, furiosas, e quando finalmente o vento as dispersou, a praça era um deserto de corpos e asas partidas. 
 
    Mais uma sexta-feira. Mais um selo rompido. 
 
    Na manhã seguinte, os jornais chamavam de “tragédia natural”. Mas Laura, diante de seu microscópio, viu algo novo nas asas das abelhas mortas: símbolos minúsculos, como inscrições queimadas na quitina. Letreiros invisíveis à vista comum. 
 
    Ela anotou no caderno: “Não são apenas insetos. São mensageiros. E o que querem transmitir é mais antigo do que nós.” 
 
    Enquanto isso, no coreto vazio, Seu Adão deixava flores frescas sobre o chão rachado e murmurava: 
 
    — Duas já foram. Cinco ainda dormem. 
 
Continua... 
 
Conto: Odair José, Poeta Cacerense

domingo, 2 de novembro de 2025

As 7 pragas na Praça Barão (Parte 1) - As formigas

    A sexta-feira começou como todas as outras. O calor de Cáceres grudava na pele, o cheiro do rio misturava-se ao da carne nas porções, e a Praça Barão era o ponto de encontro inevitável — o coração pulsante de uma cidade que fingia estar viva. 
 
    Pais empurravam carrinhos de bebê, adolescentes tiravam fotos em frente à fonte, e os garçons corriam entre mesas e risadas. Mas havia algo diferente no ar — um zumbido surdo, como se o chão murmurasse. 
 
    O primeiro a notar foi Henrique, um menino de oito anos, curioso e inquieto, de olhos atentos a tudo que se movia. Ele brincava perto do cais, empurrando um carrinho de brinquedo quando viu algo subir pelo parapeito de pedra. 
 
    Formigas. Pequenas, pretas, brilhantes como carvão molhado. 
    — Pai, olha! — disse ele, puxando a barra da calça do homem. — Elas estão vindo da água! 
 
    O pai riu. 
    — Da água, filho? Formiga não mora em rio. 
    Mas o menino insistiu. E quando os dois olharam de novo, o chão parecia respirar. 
 
    De cada fenda, de cada rachadura entre os paralelepípedos, saíam dezenas, centenas… milhares de formigas, formando trilhas negras que se espalhavam em direção às mesas, às barracas, às pernas das pessoas. 
 
    Em poucos minutos, a Praça Barão virou um tabuleiro vivo. 
 
    As pessoas primeiro acharam engraçado, depois incômodo — até que as primeiras picadas começaram. Um homem tropeçou, gritando. Uma mulher caiu, arranhando os braços, enquanto as formigas subiam por debaixo do vestido. Alguém tentou varrê-las com um pano. Outro jogou água. Nada adiantava. 
 
    Elas avançavam, coordenadas, como um exército invisível seguindo ordens. E então começaram os gritos. 
 
    Alguns caíram no chão, tremendo, os olhos revirando — as picadas se tornavam queimaduras, e a pele inchava de forma grotesca. O caos tomou conta da noite. Os bares fecharam às pressas, e a praça virou cenário de fuga. 
 
    Henrique foi arrastado pela mãe, chorando, enquanto via as formigas cobrirem os bancos, o chão, os sapatos, os corpos. O som das sirenes chegou tarde demais. 
 
    Mais tarde, no hospital, uma médica comentou baixinho com uma enfermeira: 
    — Elas não são comuns. São de espécies diferentes, todas juntas… isso não acontece na natureza. 
    A enfermeira perguntou: 
    — Então o que é isso? 
    A médica olhou pela janela, o céu escuro, e respondeu: 
    — Talvez a natureza tenha lembrado do que a gente esqueceu. 
 
    Na manhã seguinte, a praça foi isolada. As televisões falavam em “ataque atípico de insetos”. Mas, perto do cais, Seu Adão observava tudo de longe, encostado em sua bengala. A fenda no chão estava maior — um rasgo fino, escuro, onde a terra parecia pulsar. Ele sorriu com tristeza e murmurou: 
    — A primeira já veio. Faltam seis. 
 
Continua... 
 
Conto: Odair José, Poeta Cacerense