sexta-feira, 29 de agosto de 2025

A natureza humana e os desafios do século XXI

    A natureza humana é, ao mesmo tempo, força criadora e fragilidade latente. Carregamos dentro de nós o instinto de sobrevivência, mas também a sede de transcendência — queremos viver, mas também dar sentido ao viver. Essa dualidade nos acompanha desde os tempos mais antigos e se projeta, agora, nos desafios do século XXI. 
 
    Vivemos um século marcado pela velocidade: da informação, da tecnologia, da comunicação. Nunca fomos tão capazes de conectar mentes em pontos distantes do planeta, mas nunca estivemos tão expostos ao isolamento e à fragmentação. O excesso de estímulos desafia nossa capacidade de refletir, e o imediatismo coloca em xeque a paciência necessária para compreender a si mesmo e ao outro. 
 
    A natureza humana também se confronta com dilemas éticos inéditos: a inteligência artificial que questiona os limites da consciência, as mudanças climáticas que pedem responsabilidade coletiva, as desigualdades que a globalização intensificou. Somos chamados a decidir não apenas como queremos viver, mas que humanidade queremos ser. 
 
    O século XXI, assim, nos obriga a encarar a contradição central do humano: somos capazes de construir pontes ou muros, de salvar o planeta ou explorá-lo até o esgotamento, de cultivar solidariedade ou indiferença. O desafio maior talvez não esteja fora, mas dentro: compreender que a natureza humana não é destino fixo, mas potência em disputa. 
 
    E, nesse horizonte, a verdadeira medida do século não será o avanço técnico, mas a escolha ética — o quanto conseguimos transformar nosso poder em cuidado, nossa razão em sabedoria, e nossa inquietação em sentido. 
 
Reflexão: Odair José, Poeta Cacerense

domingo, 24 de agosto de 2025

O encontro

    Havia uma febre em teus olhos antes mesmo do primeiro toque. Um ímã silencioso que me puxava para o território proibido de tua pele. Não era o amor que me guiava, mas o desejo bruto — esse animal cego que se alimenta de suor e silêncio. 
 
    Tuas mãos eram oráculos, adivinhavam o que eu não ousava dizer. E quando roçaram minha pele, o mundo desabou em carne e fogo. Nada mais havia além do roçar de tua boca, da respiração entrecortada, da promessa úmida que teus lábios riscavam em mim. 
 
    Era um rito, não um encontro. Era a vertigem de me perder inteiro para que tu me devolvesses em pedaços. Cada carícia era um corte, cada gemido um selo secreto, e o tempo, cúmplice cruel, alongava cada segundo como se o instante fosse eterno. 
 
    Deliciar-me em teus carinhos era morrer e nascer em ondas. Era ter a certeza de que nenhum outro toque seria capaz de me reconstruir. Porque em teu corpo eu não encontrava apenas prazer, mas um abismo — e eu, insano, desejava sempre cair mais fundo. 
 
Conto: Odair José, Poeta Cacerense

domingo, 17 de agosto de 2025

A Noite da Alma-de-Gato

    Numa noite abafada de agosto, quando o vento do pantanal parece segurar a respiração, alguém comentou no boteco do Zé Tavares que uma Alma-de-Gato foi vista nos fundos do cemitério. Uns riram, outros fizeram o sinal da cruz. 
 
    Dona Antônia, benzedeira de mão firme, disse que essa aparição não é à toa — é aviso de mudança, de água grande ou de festa grande, porque as almas gostam de se misturar nas alegrias e tristezas do povo. 
 
    A conversa se espalhou mais rápido que notícia de eleição. E na manhã seguinte, ninguém lembrava direito se era lenda ou verdade. Mas, no íntimo, todos passaram a caminhar um pouco mais rápido ao voltar pra casa depois das 10. 
 
Crônica: Odair José, Poeta Cacerense

sexta-feira, 15 de agosto de 2025

A Sombra do Sobrado

    No final da Rua Coronel José Dulce, um sobrado de janelas azuis guarda mais que poeira e silêncio. Dona Laurinda, sentada na varanda com sua cuia de tereré, jura que, à noite, vê sombras atravessarem os cômodos — não de gente viva, mas de gente que viveu. 
 
    Turistas passam, fotografam, comentam sobre a arquitetura colonial e seguem sem saber que aquele sobrado já abrigou festas de carnaval regadas a polca paraguaia e serenatas que varavam a madrugada. Hoje, só o vento dança lá dentro, mas quem escuta com atenção ainda ouve um violão chorando, como se a cidade quisesse lembrar que a saudade também é patrimônio. 
 
Crônica: Odair José, Poeta Cacerense

quinta-feira, 7 de agosto de 2025

Meu coração é grande

    Cáceres, início dos anos 90. A Praça Duque de Caxias fervia no começo da noite, com as luzes amareladas dos postes e o cheiro de pastel vindo da barraca da esquina. Os bancos de madeira, ainda pintados de branco, era ponto de encontro de gente que queria ver e ser vista. No ar, um zunido distante de insetos e as primeiras batidas abafadas vindas do UBSSC — o clube onde, naquela época, qualquer festa parecia o evento do ano. 
 
    Geraldo, ou “Gê” para alguns, caminhava com o passo confiante de quem usava a farda com o mesmo cuidado que outros usavam perfume caro. Jovem militar, ele cultivava um sorriso fácil e um olhar que misturava charme e ousadia — qualidade ou defeito, dependendo de quem julgasse. 
 
    Naquela noite, recebeu um convite inesperado: "Aparece no UBSSC hoje, vai ser bom". O recado veio por um amigo, sem muito detalhe. E, como de costume, Gê não precisou pensar duas vezes. 
 
    O que ele não sabia é que o convite era parte de uma armadilha silenciosa. Havia semanas que Marisa, a morena de fala rápida que o chamava de “Anjo”, e Marinalva, a loira de riso tímido que carinhosamente o chamava de "Gê”, vinham trocando suspeitas. E, numa cidade onde segredo corre mais rápido que vento no rio Paraguai, as duas descobriram que ele não estava dividindo apenas o tempo… mas também o coração. 
 
    Quando Geraldo chegou à praça, não precisou procurar ninguém. Marisa e Marinalva estavam lá, lado a lado, braços cruzados, como duas estátuas prestes a ganhar vida. 
 
    — Boa noite… — arriscou ele, ainda com aquele sorriso que acreditava resolver qualquer mal-entendido. 
 
    — Gê… — disse Marinalva, com a voz dura. 
 
    — Anjo… — disse Marisa, mais fria ainda. 
 
    Ele sentiu o ar pesar. As pessoas nos bancos próximos começaram a prestar atenção, farejando drama como quem sente cheiro de chuva. 
 
    — Hoje você vai dizer — começou Marisa. — Com qual de nós você quer ficar. 
 
    — E qual de nós você ama de verdade — completou Marinalva. 
 
    Geraldo respirou fundo. A pausa foi calculada. O olhar dele percorreu o rosto das duas, como se fosse um rei prestes a decidir qual princesa escolher. Mas então, com aquele humor que sempre achou irresistível, deixou cair a frase que entraria para o folclore da praça: 
 
    — Meu coração é grande… cabe a duas. 
 
    Silêncio. E então, dois sons secos e quase simultâneos ecoaram pela praça: PÁ! PÁ! Um tapa de cada lado. 
 
    Geraldo ficou parado, a face ardendo e a vaidade amassada, enquanto as duas viravam as costas ao mesmo tempo, caminhando para lados opostos. 
 
    No banco próximo, alguém riu alto. No banco da esquina, um senhor comentou: 
 
    — Bem feito. Quem tem coração grande, que arrume também um rosto de ferro. 
 
    E assim, naquela noite, o “Gê” e o “Anjo” morreram… mas nasceu o Geraldo que pensaria duas vezes antes de tentar dançar com duas músicas ao mesmo tempo. 
 
Conto: Odair José, Poeta Cacerense

domingo, 3 de agosto de 2025

O que será que vimos?

    Não sei se foi um OVNI. Ela jura que sim. Eu digo que não, ou pelo menos, que não é tão simples assim. 
 
    Estávamos voltando para casa pela estrada de terra, depois de visitar a mãe dela no sítio. O céu estava limpo, mas pesado, como se a noite fosse mais espessa do que o normal. Eu dirigia devagar, faróis cortando a poeira que se levantava atrás do carro. Foi aí que ela pediu para eu parar. 
 
    — Olha. — disse, a mão tocando meu braço. 
 
    Acima das copas das árvores, havia uma luz. Não piscava como as de avião. Não tremia como as de torre de comunicação. Ela era firme, silenciosa, e... maior do que deveria ser. Eu fiquei ali, encostado no volante, tentando encaixar aquilo numa categoria conhecida: satélite, drone, estrela exagerada. Ela, não. Ela deu um passo para fora, no meio da estrada, o rosto virado para cima, olhos brilhando. 
 
    — Eles estão nos observando — murmurou, como se fosse uma revelação. 
 
    A luz começou a se mover. Primeiro devagar, depois numa aceleração impossível, desaparecendo atrás das nuvens como se tivesse sido engolida. O silêncio que ficou depois parecia mais pesado que o céu. 
 
    No caminho de volta, não falamos muito. Ela apertava minhas mãos de vez em quando, como quem compartilha um segredo. Já eu, tentava montar um mapa mental de trajetórias, velocidades, ângulos — qualquer coisa que pudesse explicar. 
 
    Em casa, ela ligou para a irmã e contou tudo. No relato dela, o objeto era metálico, oval, com uma luz pulsante no centro. Eu não vi nada disso, mas ela falava com tanta convicção que, por um instante, quase acreditei. 
 
    Agora, dias depois, ela continua dizendo que testemunhamos algo extraordinário. Eu continuo dizendo que foi só um fenômeno aéreo não identificado — e isso, para mim, não é a mesma coisa. 
 
    Talvez tenhamos visto a mesma luz, mas não o mesmo evento. Talvez nenhum de nós esteja errado. Ou talvez, no fundo, só exista uma verdade: às vezes, a realidade não é o que acontece no céu, mas o que cada um decide enxergar. 
 
Conto: Odair José, Poeta Cacerense