Era um domingo de sol ameno, daquele tipo que parece ter sido encomendado só pra fazer a gente lembrar dele com carinho décadas depois. Fazia parte do encanto dos anos 90, uma época em que a gente corria mais descalço do que calçado, e onde a pista de terra batida da escola era o nosso estádio olímpico.
Lembro como se fosse hoje. A cidade toda parecia estar lá. A arquibancada improvisada de madeira estalava sob o peso da torcida — pais, mães, irmãos, tios e curiosos. Uns vendiam picolés de groselha, outros subiam em árvores pra ver melhor. Aquele tipo de aglomeração que só um evento importante trazia pra cidade: a final da corrida de revezamento 4 x 4.
A gente era só moleque, mas naquele dia... naquele dia, éramos lenda.
Nos chamavam de tudo quanto é apelido. Eu era o Pernão, por motivos óbvios — tinha as pernas mais compridas da escola e corria como um louco atrás do vento. O Pescoço era alto e magrelo, parecia um galho de coqueiro, mas tinha resistência de maratonista (e também não tinha pescoço). O Matador não tinha piedade: quando pegava o bastão, era como se a pista fosse dele e o tempo fosse inimigo. E o Piti, ah… o menorzinho do grupo, mas com um coração que parecia maior que todos nós juntos. Era rápido, valente e tinha uma explosão que deixava todo mundo de queixo caído.
A gente treinava escondido, no campinho de trás da escola, usando um cabo de vassoura cortado no meio como bastão. Tínhamos a nossa própria coreografia de passadas e gritos de incentivo. Ninguém dava muito por nós. Mas a gente sabia… sabíamos o que tínhamos.
Quando chegou a hora, fiquei com a primeira perna da corrida. As outras equipes estavam alinhadas. Os olhos do público, os gritos, o cheiro de barro seco misturado com pipoca… tudo pareceu sumir por um instante. Só ouvi o apito. E corri.
Corri como se fosse o último domingo da minha vida.
Senti o vento bater no rosto e o mundo passar em borrões. Entreguei o bastão pro Pescoço com o coração batendo na boca. Ele voou. Não corria — flutuava. Passou um, dois competidores, e já estávamos na frente.
O Matador gritou antes de pegar o bastão. Era a sua marca registrada, um rugido que gelava os adversários. Correu como quem foge do próprio passado. Firme, decidido, feroz.
E então veio o Piti.
O menorzinho da equipe, o mais desacreditado. Quando recebeu o bastão, a vantagem era pequena, e atrás vinha o time dos garotos da outra escola — os "favoritos", com seus tênis novos e uniforme passado a ferro. Mas o Piti não ligava pra isso. Ele correu como se carregasse os sonhos de todos nós nas mãos.
E talvez carregasse mesmo.
O último trecho foi uma eternidade. Eu lembro de gritar tanto que fiquei rouco por dois dias. Todo mundo na arquibancada de pé, gente pulando, jogando boné pro alto, gritando o nome do Piti como se fosse de jogador profissional. Ele cruzou a linha de chegada com o peito estufado e um sorriso que não cabia no rosto.
A vitória foi nossa.
Não teve pódio, nem medalha de ouro reluzente, mas aquilo… aquilo foi maior. A gente se abraçou, suados, ofegantes, quase sem acreditar. Choramos. Sim, choramos mesmo sendo “durões”. Era alegria demais pra guardar só no peito.
Hoje, sentado na varanda, com os joelhos estalando e os dias passando mais devagar, ainda escuto aqueles gritos. Ainda vejo o bastão voando de mão em mão, a poeira subindo, o sol iluminando nossos rostos jovens e sonhadores.
A corrida passou. Mas aquela vitória, meu amigo… aquela ficou.
Conto: Odair José, Poeta Cacerense
Obs. Em memória do nosso amigo Piti (In Memoriam)