sábado, 20 de dezembro de 2025

As 7 pragas na Praça Barão (Parte 4) - Os gafanhotos

    O vento chegou antes do som. Um sopro quente, vindo do oeste, trazendo consigo o cheiro do rio e algo mais: o farfalhar seco de asas incontáveis. Era como se o céu se desfizesse em poeira viva. 
 
    Laura estava em casa quando as janelas começaram a vibrar. Correu para a varanda e viu a nuvem — não de chuva, mas de corpos. Milhares, milhões de gafanhotos, cobrindo o sol até transformá-lo num círculo avermelhado. 
 
    O rádio estourava com alertas da Defesa Civil. “Permaneçam em casa. Fechem portas e janelas.” Mas a cidade já estava de joelhos. 
 
    Em poucos minutos, os jardins sumiram. As árvores foram devoradas até o osso, o gramado virou lama, e o som — aquele roçar incessante de asas — lembrava uma oração invertida. 
 
    Na Praça Barão, os primeiros que tentaram filmar o fenômeno foram engolidos por uma massa viva que parecia pensar. Os gafanhotos avançavam em redemoinhos, entrando pelas casas, cobrindo muros, arrastando tudo. 
 
    Laura, ofegante, vestiu o jaleco e seguiu para a universidade. Precisava compreender, mesmo que o medo lhe corroesse a razão. No laboratório, acendeu as luzes de emergência e abriu as gavetas antigas do acervo histórico. Entre mapas e documentos de 1800 e poucos, encontrou algo que a fez estremecer: “Planta da antiga Vila Maria do Paraguai — Campo dos Silenciados. Local destinado ao sepultamento dos escravizados mortos em cativeiro.” 
 
    A planta mostrava, com traços pálidos, o mesmo lugar onde hoje estava a Praça Barão. O coração da cidade erguido sobre ossos e esquecimento. 
 
    Laura sentiu um arrepio percorrer o corpo. As pragas não vinham do nada — eram respostas. Respostas da terra, clamando memória. No corredor escuro, o padre Augusto apareceu, encharcado de chuva. 
 
    — Eu sabia que a senhora viria aqui. 
 
    — Padre, o senhor sabia disso? O campo, os sepultamentos? 
 
    Por um pequeno instante ele hesitou. 
 
    — Há registros apagados, nomes riscados nos livros da paróquia. O Barão… o homem que dá nome à praça… foi quem ordenou o silêncio. 
 
    Laura olhou pela janela: o céu agora era uma cortina viva. Os gafanhotos batiam contra o vidro, e, entre as asas, parecia haver palavras desenhadas, padrões que se repetiam. 
 
    — Eles querem ser lembrados — disse ela, quase em transe. — Cada praga é um chamado. 
 
    O padre cruzou os braços. 
 
    — Ou uma contagem regressiva. 
 
    Do lado de fora, a praça desaparecia sob o enxame. Os postes piscavam, a energia falhava, e o chão parecia tremer sob o peso da multidão de asas. 
 
    No meio do caos, Seu Adão andava calmamente, coberto de poeira dourada. Os gafanhotos não o tocavam. Ele parou diante da fenda — agora larga o suficiente para revelar degraus de pedra descendo ao escuro — e começou a cantar. A voz era antiga, rouca, e vinha de outro tempo: um lamento em língua esquecida. 
 
    Enquanto a cidade rezava por luz, a terra abria os olhos. 
 
Continua... 
 
Conto: Odair José, Poeta Cacerense

quarta-feira, 17 de dezembro de 2025

A jovem leitora encantadora

    A palestra começou como começam todas as coisas que julgamos sob controle: com palavras alinhadas, ideias preparadas, livros empilhados sobre a mesa. Fui apresentado, aplaudido com gentileza acadêmica, e passei a falar da escrita como quem abre uma casa antiga — mostrando cômodos, rachaduras, silêncios. Falava dos meus livros, das obsessões que me conduzem, da leitura como abrigo e abismo. 
 
    À minha frente, um grupo de estudantes de Letras me escutava com atenção rara. Havia olhos curiosos, cadernos abertos, canetas em vigília. Mas, entre todos, um olhar não apenas escutava — permanecia. 
 
    Ela estava sentada algumas fileiras adiante. Não chamava atenção pelo excesso, mas pelo contrário: havia nela uma economia de gestos, uma elegância que não parecia ensaiada. O cabelo em repouso, o corpo atento, o rosto iluminado por uma beleza que não se explicava nos padrões comuns. O mistério estava sobretudo nos olhos: profundos, como se carregassem leituras que ainda não escreveu e silêncios que não pretende contar. 
 
    Enquanto eu falava sobre personagens, narrativas e o perigo de se escrever demais sobre si mesmo, percebi que já não falava apenas para a sala. Cada frase, sem que eu quisesse, buscava aquele ponto exato onde ela estava. Como se a literatura, naquele instante, tivesse escolhido uma leitora específica. 
 
    Houve um momento em que nossos olhares se cruzaram — rápido, quase acidental — e, ainda assim, definitivo. Não houve sorriso, não houve gesto. Apenas o reconhecimento estranho de que algo havia sido lido sem palavras. Continuei a palestra, mas já não era o mesmo. Eu falava, e por dentro revisava cada frase, como se ela pudesse lê-las por dentro também. 
 
    Quando tudo terminou, vieram as perguntas, os agradecimentos, os livros autografados. Ela permaneceu ali, misturada aos outros, até se aproximar, delicadamente, e trocarmos algumas palavras sobre livros e leitura. E talvez por isso mesmo tenha ficado em minha mente o seu encanto, sua delicadeza. Não sei se por impulso ou destino, mas prometi dar-lhe um dos meus livros. 
 
    Desde então, não deixo de pensar nela. Não sei muito sobre ela, seus gostos, sua voz, suas leituras preferidas. Sei apenas do instante suspenso em que fui menos escritor e mais personagem. Há encontros que não pedem continuidade; pedem memória. E essa jovem, surgida entre páginas e cadeiras acadêmicas, tornou-se uma dessas histórias que a vida escreve sem se preocupar com desfechos. 
 
    Talvez seja isso o encanto: não saber. Guardar. Continuar escrevendo com a sensação de que, em algum lugar, alguém lê não apenas o que escrevo — mas o que sou quando escrevo. 
 
Crônica: Odair José, Poeta Cacerense

terça-feira, 16 de dezembro de 2025

Uma sombra projetada pelo sol do agora

    A imagem do ontem é uma sombra projetada pelo sol do agora. Está aqui, mas sempre está distante, como um reflexo em água turva. O que chamamos de ontem é o que nunca tocamos, apenas vislumbramos em nossos olhos de memória. Mas é também o que se repete, o que se imortaliza na repetição — o ontem, que nunca é o mesmo, mas sempre parece ser. 
 
    A criação é uma tentativa de capturar o ontem, de torná-lo presente. Escrevemos, pintamos, moldamos, para trazer o que já passou à nossa frente, mas será que conseguimos? Ou estamos apenas criando uma ilusão do que nunca foi? A arte, o pensamento, é uma busca incessante por algo que nos escapa, uma tentativa de fixar o que é efêmero, de tornar visível o invisível. 
 
    E a paranoia, onde entra nisso? Talvez seja a sensação de que estamos sendo observados pela própria criação — que, ao tentar capturar o ontem, começamos a ser consumidos por ele. A paranoia não é o medo de algo que está longe, mas o pavor de que algo de longe já está dentro de nós, e de que não podemos escapar de nós mesmos. Talvez a criação seja, então, uma forma de desespero, uma tentativa de lidar com a sensação de que nunca estamos verdadeiramente aqui, mas sempre numa perpetuação do que já foi, numa repetição que nos destrói e nos cria ao mesmo tempo. 
 
Pensamentos: Odair José, Poeta Cacerense

terça-feira, 9 de dezembro de 2025

As 7 pragas na Praça Barão (Parte 3) - Os corvos

    A chuva começou antes do amanhecer — uma dessas chuvas pesadas, sem relâmpagos, que caem como se o céu estivesse cansado de segurar tanta lembrança. A Praça Barão estava vazia, cercada por fitas amarelas e silêncio. O coreto, ainda manchado das tragédias anteriores, parecia observar tudo com olhos de pedra. 
 
    Mesmo com o isolamento, ninguém conseguia evitar passar por lá. Era o coração da cidade. E corações, mesmo feridos, insistem em pulsar. 
 
    A bióloga Laura chegou cedo, com um caderno nas mãos e olheiras profundas. As autoridades haviam pedido sua ajuda novamente — mas no fundo, ela sabia que não havia mais nada de racional a investigar. As amostras, as análises, os relatórios… tudo apontava para o impossível. 
 
    Enquanto caminhava entre as poças, ouviu um som rouco, distante. Olhou para o alto. Os fios de energia e as árvores da praça estavam cobertos por corvos. 
 
    Centenas deles. Encharcados, imóveis, com os olhos brilhando como contas de vidro. 
 
    Ela ficou parada, hipnotizada. O padre Augusto apareceu logo depois, trazendo um guarda-chuva e o mesmo semblante abatido. 
 
    — Eu avisei — disse ele, sem ironia. — A terceira chegou. 
 
    — São só aves… — respondeu Laura, embora sua voz tremesse. 
 
    — Nenhuma ave comum olha o homem desse jeito. 
 
    Os dois ficaram ali, observando o estranho silêncio dos corvos. Até que, como se obedecessem a uma ordem invisível, eles começaram a se mover. Primeiro um, depois dois, depois todos. O som das asas rasgou o ar, e o céu se cobriu de preto. 
 
    Os corvos começaram a cair. Não voavam — caíam. Desabavam sobre o chão, sobre os telhados, sobre os carros, como chuva viva. Alguns batiam contra as janelas, outros simplesmente despencavam, mortos. E os que ainda viviam, cambaleavam e atacavam o que encontravam. 
 
    Gritos ecoaram pelas ruas. Pessoas corriam, escorregavam, tropeçavam nos corpos das aves. O chão se tornou uma manta negra de penas e sangue. 
 
    Laura e o padre se abrigaram dentro da igreja novamente. O som dos bicos batendo contra as portas era como o de pedrinhas em um caixão. 
 
    — Eles não estão atacando — disse o padre. — Estão tentando entrar. 
 
    — Entrar pra quê? — perguntou Laura, ofegante. 
 
    Ele fez o sinal da cruz. — Pra confessar. 
 
    Quando o barulho cessou, abriram a porta. A praça estava coberta de silêncio e morte. O cheiro era insuportável. 
 
    Entre os corpos dos corvos, Laura percebeu algo: alguns tinham nas asas o mesmo pó escuro que encontrara nas formigas — uma poeira quase mineral. Tocou com a ponta dos dedos. Era fria, mas pulsava. 
 
    O padre recolheu um dos pássaros e o colocou sobre o altar. 
 
    — Antigamente — disse ele —, quando alguém morria sem confissão, soltavam corvos para carregar a alma. 
 
    Laura olhou para ele. — E se esses não vieram levar, padre… mas devolver? 
 
    O homem ficou em silêncio. 
 
    Do lado de fora, Seu Adão caminhava lentamente pela praça. Chovia de novo. Ele passou entre os corpos dos pássaros, rezando baixo, e parou diante da fenda que agora se alargava como uma boca. Do fundo dela, subia um vapor leve, quente, e um som quase inaudível — como se alguém sussurrasse nomes. 
 
    Ele fechou os olhos e murmurou: 
 
    — Três já clamaram. Quatro ainda sonham. 
 
    — Mas o sonho… o sonho está acordando. 
 
Continua... 
 
Conto: Odair José, Poeta Cacerense

terça-feira, 11 de novembro de 2025

Aforismos sobre leitura

    1. Ler é atravessar o espelho sem quebrá-lo. É despir o mundo de suas leis e vestir o impossível. 
 
    2. Abro um livro e o tempo se curva. A realidade, tímida, espera do lado de fora da página. 
 
    3. Cada palavra é uma porta. Cada frase, uma travessia secreta — e ao final do parágrafo, já não sou o mesmo que começou a ler. 
 
    4. Ler é sonhar com os olhos acordados, é saborear o delírio sem precisar dormir. 
 
    5. No silêncio das letras, o mundo perde o peso. E eu, leve, fujo para onde ninguém me encontra — nem mesmo eu. 
 
    6. O livro é uma ferida que cicatriza por dentro. Quanto mais leio, mais me curo do real. 
 
    7. A leitura é um exílio voluntário. Mas lá, no país das páginas, sou rei, ou sombra, conforme o capítulo. 
 
Aforismos: Odair José, Poeta Cacerense

Ponto de partida

 
    O que pensamos e fazemos hoje cria o nosso amanhã. Cada ideia, emoção e escolha molda o caminho que iremos percorrer. A felicidade não está no futuro — ela começa agora, nos pensamentos que alimentamos. Se hoje cultivamos confiança, gratidão e amor, o amanhã refletirá essa mesma luz. O presente é o ponto de partida de tudo o que seremos. 
 
Pensamento: Odair José, Poeta Cacerense

sábado, 8 de novembro de 2025

As 7 pragas na Praça Barão (Parte 2) - As abelhas

    A semana passou como uma sombra que finge ser luz. Na segunda-feira, a prefeitura anunciou que tudo estava sob controle. “Um surto natural”, disseram. “Fenômeno isolado.” Mas quem passou pela Praça Barão naquela manhã sentiu o ar diferente — como se o vento evitasse tocar o chão. 
 
    Os garis lavaram o piso com jatos de água e cloro. O cheiro de formigas queimadas misturava-se ao perfume das árvores e à lembrança recente dos gritos. Mesmo assim, na sexta-feira seguinte, os bares voltaram a abrir. Porque o medo, quando não tem explicação, logo vira costume. 
 
    Entre as mesas, sentava-se Dra. Laura Nogueira, bióloga da universidade local. Ela observava o movimento enquanto tomava uma cerveja morna. Estava ali por curiosidade científica — ou talvez por inquietação. As amostras das formigas que recolhera não faziam sentido algum: espécies de regiões distintas, impossíveis de coexistirem, agindo como um só organismo. 
 
    Mas o que mais a perturbava era outra coisa. Nas lâminas de microscópio, entre os fragmentos, havia uma substância escura, viscosa — como se fosse sangue fossilizado. 
 
    Laura olhava para o chão da praça e imaginava raízes de carne, veias antigas pulsando sob os paralelepípedos. Ela não sabia explicar, mas sentia que aquilo não era apenas biologia. Era memória. 
 
    Pouco antes do pôr do sol, o padre Augusto se aproximou dela. Um homem alto, olhar cansado, conhecido pelos sermões sobre pecado e esquecimento. 
 
    — A senhora acredita em coincidências, doutora? — perguntou, com a voz rouca. 
 
    — Em ciência, padre, coincidência é apenas o nome que damos ao que ainda não entendemos. 
 
    Ele assentiu. 
 
    — Então a senhora entenderá logo. A segunda praga está a caminho. 
 
    Laura riu, mas o riso morreu antes de nascer. O ar, de repente, ficou espesso. O vento cessou. E um zumbido começou a crescer, distante, metálico — como se o céu estivesse se abrindo. 
 
    De repente, uma nuvem negra cobriu o entardecer. Abelhas. Milhares. Talvez milhões. 
 
    Elas desciam como uma chuva viva, grudando em cabelos, roupas, rostos. O som era ensurdecedor. As pessoas corriam, tropeçavam, batiam nas portas dos bares. O zumbido se tornava grito. 
 
    O padre agarrou Laura pelo braço e a arrastou para dentro da igreja em frente à praça. Fechou as portas. As janelas tremeram sob o impacto das abelhas. De fora, vinham gritos, orações, o som de copos quebrando e motores tentando fugir. 
 
    — Padre, o que é isso? — ela perguntou, apavorada. 
 
    Ele olhou para o crucifixo e respondeu baixo: 
 
    — No Êxodo, as pragas não vinham do céu nem da terra. Vinham da culpa dos homens. 
 
    Lá fora, o céu parecia arder. As abelhas atacavam sem razão, cegas, furiosas, e quando finalmente o vento as dispersou, a praça era um deserto de corpos e asas partidas. 
 
    Mais uma sexta-feira. Mais um selo rompido. 
 
    Na manhã seguinte, os jornais chamavam de “tragédia natural”. Mas Laura, diante de seu microscópio, viu algo novo nas asas das abelhas mortas: símbolos minúsculos, como inscrições queimadas na quitina. Letreiros invisíveis à vista comum. 
 
    Ela anotou no caderno: “Não são apenas insetos. São mensageiros. E o que querem transmitir é mais antigo do que nós.” 
 
    Enquanto isso, no coreto vazio, Seu Adão deixava flores frescas sobre o chão rachado e murmurava: 
 
    — Duas já foram. Cinco ainda dormem. 
 
Continua... 
 
Conto: Odair José, Poeta Cacerense

domingo, 2 de novembro de 2025

As 7 pragas na Praça Barão (Parte 1) - As formigas

    A sexta-feira começou como todas as outras. O calor de Cáceres grudava na pele, o cheiro do rio misturava-se ao da carne nas porções, e a Praça Barão era o ponto de encontro inevitável — o coração pulsante de uma cidade que fingia estar viva. 
 
    Pais empurravam carrinhos de bebê, adolescentes tiravam fotos em frente à fonte, e os garçons corriam entre mesas e risadas. Mas havia algo diferente no ar — um zumbido surdo, como se o chão murmurasse. 
 
    O primeiro a notar foi Henrique, um menino de oito anos, curioso e inquieto, de olhos atentos a tudo que se movia. Ele brincava perto do cais, empurrando um carrinho de brinquedo quando viu algo subir pelo parapeito de pedra. 
 
    Formigas. Pequenas, pretas, brilhantes como carvão molhado. 
    — Pai, olha! — disse ele, puxando a barra da calça do homem. — Elas estão vindo da água! 
 
    O pai riu. 
    — Da água, filho? Formiga não mora em rio. 
    Mas o menino insistiu. E quando os dois olharam de novo, o chão parecia respirar. 
 
    De cada fenda, de cada rachadura entre os paralelepípedos, saíam dezenas, centenas… milhares de formigas, formando trilhas negras que se espalhavam em direção às mesas, às barracas, às pernas das pessoas. 
 
    Em poucos minutos, a Praça Barão virou um tabuleiro vivo. 
 
    As pessoas primeiro acharam engraçado, depois incômodo — até que as primeiras picadas começaram. Um homem tropeçou, gritando. Uma mulher caiu, arranhando os braços, enquanto as formigas subiam por debaixo do vestido. Alguém tentou varrê-las com um pano. Outro jogou água. Nada adiantava. 
 
    Elas avançavam, coordenadas, como um exército invisível seguindo ordens. E então começaram os gritos. 
 
    Alguns caíram no chão, tremendo, os olhos revirando — as picadas se tornavam queimaduras, e a pele inchava de forma grotesca. O caos tomou conta da noite. Os bares fecharam às pressas, e a praça virou cenário de fuga. 
 
    Henrique foi arrastado pela mãe, chorando, enquanto via as formigas cobrirem os bancos, o chão, os sapatos, os corpos. O som das sirenes chegou tarde demais. 
 
    Mais tarde, no hospital, uma médica comentou baixinho com uma enfermeira: 
    — Elas não são comuns. São de espécies diferentes, todas juntas… isso não acontece na natureza. 
    A enfermeira perguntou: 
    — Então o que é isso? 
    A médica olhou pela janela, o céu escuro, e respondeu: 
    — Talvez a natureza tenha lembrado do que a gente esqueceu. 
 
    Na manhã seguinte, a praça foi isolada. As televisões falavam em “ataque atípico de insetos”. Mas, perto do cais, Seu Adão observava tudo de longe, encostado em sua bengala. A fenda no chão estava maior — um rasgo fino, escuro, onde a terra parecia pulsar. Ele sorriu com tristeza e murmurou: 
    — A primeira já veio. Faltam seis. 
 
Continua... 
 
Conto: Odair José, Poeta Cacerense

sexta-feira, 31 de outubro de 2025

O coração do impossível

    O devaneio nasce quando o silêncio respira e o mundo, por um instante, suspende sua ordem. É nesse intervalo que o desejo desperta, úmido e febril, buscando forma nas dobras da imaginação. Tudo o que foi contido começa a murmurar — lembranças, fantasias, promessas que nunca chegaram a ser palavras. O pensamento se curva, então, ao prazer do próprio delírio. 
 
    Entre a luz e o esquecimento, o devaneio ergue seu jardim secreto. As flores são desejos antigos, guardados como relíquias de uma vida sonhada. As sombras, tentações que nunca morreram de todo, apenas aprenderam a disfarçar-se de pensamento. Cada pétala é uma lembrança do que não se viveu; cada espinho, a lembrança do que se ousou desejar. 
 
    E assim o devaneio cresce, alimentado pelo perfume do impossível. Nele o corpo recorda o que a mente tentou esquecer — e o espírito, cansado da razão, se deita no colo do talvez. Não é fuga: é retorno. Retorno à primeira vertigem, ao instante em que querer era mais puro que possuir, e o proibido ainda não tinha nome. 
 
    No fundo, o devaneio é um espelho brumoso onde nos contemplamos sem disfarces. Ali se acumulam nossos desejos, nossas tentações, nossas pequenas mortes e renascimentos. E quando despertamos dele, um vestígio permanece: um brilho nos olhos, como se tivéssemos tocado — por um instante — o coração invisível do que jamais existiu. 
 
Pensamentos: Odair José, POeta Cacerense

terça-feira, 14 de outubro de 2025

O velho professor de História

    Eu me lembro bem daquele tempo — um tempo em que o sol parecia mais pesado, como se cada raio me empurrasse para dentro de mim mesmo. Eu tinha uns doze anos, talvez treze. A escola já não me dizia muita coisa. A casa estava sempre vazia. Minha mãe não estava lá e meu pai vivia mais no trabalho do que em casa. Apenas meu irmão menor me fazia companhia quando não estávamos brigados por alguma besteira. E eu, perdido no meio disso tudo, comecei a faltar às aulas. Primeiro um dia, depois outro. Até que parei de vez. 
 
    Meus colegas diziam que eu estava “cansado”, mas no fundo eu estava era fugindo. Do barulho, da saudade, do abandono. Eu acordava tarde, sentava debaixo da mangueira no quintal e ficava olhando as folhas se mexerem, como se o vento fosse o único que ainda me entendesse. Vez ou outra eu e meu irmão brincava de jogar bola. A bola, quase sempre, era feita de meias. 
 
    Foi numa dessas manhãs que ouvi um barulho diferente: uma bicicleta velha, freando em frente ao portão. Quando olhei, vi o professor Luiz descendo, com aquele jeito sério que ele tinha. Ele era o diretor da escola, e também dava aula de História — a única matéria que eu realmente gostava. 
 
    — Bom dia, rapaz — ele disse, encostando a bicicleta. — Sua professora me disse que você anda sumido. 
 
    Fiquei em silêncio. Não sabia o que dizer. 
 
    Ele pediu licença e veio se sentar comigo, ali mesmo, sob a mangueira. Ficamos um tempo calados, ouvindo o som dos galhos e o canto distante de um galo. Depois, ele falou: 
 
    — Sabe, eu também já pensei em largar tudo. Quando eu era novo, achava que estudar não servia para nada. Mas foi a História que me segurou. Descobrir que outros, antes de mim, também se perderam e encontraram o caminho... isso me deu força. 
 
    Olhei pra ele sem entender muito. 
 
    — A vida, meu rapaz — continuou —, é feita de idas e voltas. Às vezes a gente se perde para descobrir quem é. Mas se a gente não volta, o mundo continua andando sem nós. E, quando você resolve voltar, talvez já seja tarde. 
 
    Aquelas palavras ficaram presas em mim. Ele se levantou, enxugou a testa de suor e disse: 
 
    — Amanhã te espero na escola. Não precisa dizer nada agora. Só apareça. 
 
    E foi embora, pedalando devagar, deixando um rastro de poeira na rua de chão. 
 
    Naquela noite, não consegui dormir direito. Fiquei pensando em como ele podia ter tirado uma manhã para vir até ali, falar comigo. Ninguém fazia isso. No dia seguinte, acordei cedo, lavei o rosto e vesti a camisa da escola. Caminhei devagar até o portão, e pela primeira vez em muito tempo, senti vontade de continuar andando. 
 
    Voltei para a sala de aula. Os colegas me olharam como se eu fosse um fantasma. O professor Luiz apenas sorriu e me entregou um caderno novo. 
 
    — Escreva a sua própria história — ele disse. 
 
    Anos se passaram. Hoje, sou eu quem entra nas salas, quem observa nos olhos inquietos dos alunos aquele mesmo brilho que eu um dia perdi. Dou aulas de História — a mesma disciplina que me salvou — e, às vezes, quando um aluno some por uns dias, eu fico pensando se não precisa de algum tipo de ajuda. E, de alguma forma, tento ajudar.
 
    Sempre tem uma mangueira esperando. Sempre tem alguém precisando ouvir que ainda é tempo de voltar. Sempre é tempo de construir a própria história.
 
Conto: Odair José, Poeta Cacerense