sexta-feira, 13 de junho de 2025

Sangue na Fronteira

    Mato Grosso / Paraguai – 1866 – Batalha de Tuiuti 
 
    Assim que abriu os olhos, Artur foi atingido por um calor sufocante. O sol parecia pesar sobre a pele, e o ar estava carregado de um cheiro metálico de sangue e pólvora. Ao seu redor, um campo aberto de vegetação rasteira e banhados enlameados. O som de tambores, gritos de ordens e tiros ecoava de todos os lados. 
 
    Ele estava em Tuiuti, no território paraguaio, palco da maior e mais sangrenta batalha campal da história da América do Sul. 
 
    À sua esquerda, via as tropas brasileiras, argentinas e uruguaias — a Tríplice Aliança — em formação, preparando-se para o impacto. Muitos eram jovens mal treinados. Soldados de fardas azuis e cinzas, com os rostos cobertos de suor e lama. 
 
    Do outro lado, os paraguaios, sob o comando do determinado Marechal Solano López, avançavam com fúria. Eram milhares, com lanças, baionetas e a coragem de quem luta pela própria terra. 
 
    A artilharia rugia. A terra tremia. Artur viu cavalos tombando, soldados gritando por médicos, outros morrendo em silêncio com o olhar perdido para o céu. 
 
    Por entre a fumaça dos canhões, viu também a chegada das tropas de voluntários da pátria, brasileiros de diferentes cantos, inclusive do interior de Mato Grosso, lutando com bravura. 
 
    Ele caminhou por entre as linhas, ouvindo os relatos sussurrados: 
 
    — "Falta comida…" 
 
    — "Não temos munição suficiente…" 
 
    — "O solo bebeu mais sangue hoje do que chuva no último mês…" 
 
    Artur parou por um instante ao lado de um médico improvisado, que, com as mãos tremendo, tentava amputar uma perna sem anestesia. O grito do soldado ecoou como um lamento pelo continente inteiro. 
 
    Ao longe, viu a bandeira brasileira tremulando, cravada no meio da lama. 
 
    Quando o dia terminou, o cenário era de devastação total. Mais de 9 mil mortos em um só dia. Um massacre. 
 
    Artur sabia que a Guerra do Paraguai ainda continuaria por anos, arrastando-se até 1870, com fome, doenças e milhares de vidas perdidas. 
 
Conto: Odair José, Poeta Cacerense

Entre páginas e silêncio

    Havia um tempo em que os livros eram meu esconderijo favorito. Não que o mundo lá fora fosse insuportável, mas o de dentro — o das páginas amareladas, das palavras alinhadas como soldados de um exército gentil — era infinitamente mais fascinante. 
 
    Lembro-me da infância como se fosse um parágrafo bem escrito: cheia de imagens, sons e um silêncio confortável. Era ali, entre as estantes altas da biblioteca da escola ou nos cantos esquecidos do meu quarto, que eu encontrava o que os outros chamavam de “solidão”. Eu chamava de aventura. 
 
    Tinha algo de sagrado no ato de abrir um livro. Como se ao folhear suas páginas, eu estivesse mexendo em um relicário de vozes antigas. Algumas histórias falavam comigo de um jeito que nenhum adulto conseguia. Outras pareciam adormecer junto comigo, com a última frase lida ecoando no escuro como uma canção de ninar. 
 
    Hoje, passo os olhos pela estante com a mesma ternura de quem folheia um álbum de fotografias. Reconheço ali pedaços meus — o garoto que acreditava em dragões, o adolescente que se apaixonou por palavras difíceis, o adulto que ainda se emociona com finais tristes. 
 
    O curioso é que não sinto apenas saudade das histórias. Sinto saudade de quem eu era enquanto as lia. Do silêncio da tarde, do cheiro de papel velho, da sensação de estar em dois lugares ao mesmo tempo: aqui, e onde quer que a história me levasse. 
 
    Há livros que nunca mais reli, mas que vivem comigo como cicatrizes bonitas. Sei de cor certas frases, como se fossem promessas sussurradas por um velho amigo. Porque é isso que os livros são, no fim das contas: amigos de alma, guardiões de quem fomos e mensageiros de quem podemos ser. 
 
    Talvez a maior nostalgia de quem ama os livros seja essa: não da história em si, mas do tempo em que ler era a nossa maneira mais pura de existir. 
 
Crônica: Odair José, Poeta Cacerense

quarta-feira, 11 de junho de 2025

O Viajante da História I - O livro antigo

    O cheiro de papel envelhecido preenchia o ar como um perfume sagrado. Na penumbra da biblioteca, cercado por estantes altas e sombras espessas, o professor Artur Montenegro passava os dedos por lombadas gastas. Era seu ritual favorito nas manhãs frias: mergulhar entre os livros da velha casa colonial que herdara do avô, também historiador. 
 
    Aposentadoria era uma palavra que ainda lhe soava estranha. Depois de quarenta anos em salas de aula, ele não sabia ao certo quem seria sem o quadro-negro, os alunos, os debates apaixonados sobre os rumos da humanidade. 
 
    Naquela manhã, ao reorganizar uma das prateleiras esquecidas, seus dedos tropeçaram em um volume que não reconhecia: capa de couro gasta, sem título, sem autor. Apenas uma espiral dourada gravada no centro. 
 
    Ao abri-lo, as primeiras páginas continham ilustrações de antigos mapas, trechos manuscritos em uma caligrafia quase arcaica. Mas no centro do livro — curioso e fora de lugar — havia um conjunto de páginas amarelecidas completamente em branco. 
 
    Com o coração batendo forte, Artur pegou sua velha caneta-tinteiro e, quase sem pensar, escreveu: 
 
    "14 de julho de 1789 – Paris" 
 
    No instante seguinte, as letras desapareceram da folha. E a sala pareceu estremecer. O ar se comprimiu. Um redemoinho de vento e luz envolveu seu corpo. Quando os sentidos voltaram, ele estava de pé no meio de uma multidão... e, à frente, a Bastilha.
 
Continua...
 
Conto: Odair José, Poeta Cacerense

domingo, 8 de junho de 2025

Leia

    Leia. Porque cada página virada é um passo a mais rumo à liberdade. 
    Ler é enxergar com os olhos dos outros, sentir com corações distantes, viver mil vidas dentro da sua. 
    É aprender a pensar, a questionar, a imaginar o que ainda não existe. 
    Quem lê nunca está só — carrega mundos dentro de si. 
    E quanto mais se lê, mais se cresce. 
    A leitura é um caminho silencioso que leva à coragem, à empatia e ao despertar. 
    Não importa onde você esteja: um livro sempre pode te levar mais longe. 
 
Reflexão: Odair José, Poeta Cacerense

sábado, 7 de junho de 2025

O homem à beira do mundo

    O céu estava pálido, como se tivesse esquecido de ser azul. Ele caminhava há dias, sem rumo, por entre campos secos e árvores silenciosas. Ninguém o chamava pelo nome — talvez ele mesmo já o tivesse esquecido. 
 
    Sentou-se à beira de um abismo de pedras, onde o vento sussurrava verdades que os homens evitam ouvir. E ali, tão sozinho, algo dentro dele começou a falar. 
 
    — Tão sozinho... — murmurou, os olhos perdidos no horizonte. — Descubro que o eco é minha própria voz. E nela... há um mundo inteiro escondido. 
 
    A mão trêmula tocou o peito. Sentiu o coração. Não batia por ninguém, não esperava por ninguém. Apenas era. 
 
    — A solidão não é vácuo — ele pensou — mas ventre. Um lugar onde o que fui morre... e o que sou começa a respirar. 
 
    O silêncio era quase insuportável. Mas ele ficou. E, ficando, escutou. 
 
    — Quando o mundo se cala... — sussurrou como quem reza — me escuto. 
 
    Ali, naquele fim de caminho, descobriu: já não era um entre muitos. Era inteiro entre ecos. 8E mesmo sem saber o nome que o mundo lhe deu, encontrou um que servia melhor: Sobrevivente do próprio vazio. 
 
Conto: Odair José, Poeta Cacerense

sexta-feira, 6 de junho de 2025

Sob o olhar da figueira

    Era uma tarde abafada de setembro, daquelas em que o céu de Cáceres fica parado, como se observasse tudo com olhos antigos. A Unemat fervilhava com os estandes do evento acadêmico. Havia exposições, debates, oficinas. No pátio central, um velho pé de figueira estendia suas raízes como braços de um deus silencioso, oferecendo sombra e refúgio. 
 
    Lucas havia ido por obrigação. Estudante de Medicina, filho de uma família tradicional da capital, tinha o costume de não se misturar com os outros cursos — “besteira de humanas”, seu pai diria. Mas ali estava ele, esperando a palestra de um professor cubano sobre saúde pública. Enquanto isso, distraía-se com o celular, até ouvir uma voz firme e doce dizendo: 
 
    — Pode tirar os fones. Aqui embaixo da figueira é território de escuta. 
 
    Ele olhou, confuso. Diante dele, uma jovem de tranças longas, olhos atentos e sorriso atrevido. Trazia livros nos braços e vestia uma camiseta com os dizeres: “Educar é um ato de amor e coragem.” 
 
    — Desculpa? — ele perguntou, tirando um fone do ouvido. 
 
    — Estou só brincando. É que essa figueira é um marco pros calouros da Pedagogia. A gente se reúne aqui desde sempre. Costuma ser um bom lugar pra ouvir histórias, sabe? 
 
    Lucas sorriu, meio sem jeito. Algo na presença dela desarmava seu tédio. 
 
    — Sou o Lucas. 
 
    — Eu sou a Ana Clara. Terceiro semestre de Pedagogia. E você? 
 
    — Medicina. Primeiro ano. 
 
    — Hum... futuro doutor. Já salvou alguma vida ou ainda tá apanhando da bioquímica? 
 
    Ele riu, relaxando pela primeira vez em dias. 
 
    — Apanhando, com certeza. Mas e você? Já alfabetizou o mundo? 
 
    — Ainda não. Mas aprendi que a escuta vem antes da letra. E que o amor ensina mais do que o medo. 
 
    Ficaram conversando por horas, entre piadas e confissões. Ana Clara falava com paixão sobre Paulo Freire, sobre sua mãe empregada doméstica que sempre sonhou que a filha tivesse “um nome na porta”. Lucas escutava, encantado. Pela primeira vez, alguém o fazia sentir pequeno de um jeito bom — não diminuído, mas ampliado. 
 
    Ele não contou de imediato que vinha de uma família onde o racismo era sussurrado em jantares elegantes. Nem que sua mãe torceria o nariz se o visse ali, sob a figueira, rindo com uma garota negra e cotista. 
 
    Mas voltou no dia seguinte. 
 
    E no outro. 
 
    Sempre sob o mesmo figueiral. 
 
    Ana Clara começou a escrever poemas sobre encontros impossíveis que, mesmo assim, aconteciam. Lucas começou a se interessar por saúde coletiva, por políticas públicas, por coisas que antes ignorava. Ela o ensinava a olhar. Ele aprendia a desaprender. 
 
    Foi num fim de tarde, quando o sol desenhava rendas no chão através das folhas da figueira, que ele a beijou pela primeira vez. Sem pressa, sem certeza. Apenas o toque de dois mundos que, por um instante, se tornavam um só. 
 
    O romance deles não foi fácil. Havia olhares atravessados nos corredores. Amizades desfeitas. Comentários maldosos disfarçados de brincadeira. Mas também havia cartas, cafés compartilhados, livros trocados e uma certeza silenciosa que crescia como raiz: algo ali era verdadeiro. 
 
    Certa vez, Ana Clara lhe disse: 
 
    — Amar você é como plantar semente em solo que disseram ser estéril. Mas olha... — e apontou para o broto de manjericão que cultivavam juntos — ...a gente desafia até a terra quando cuida com amor. 
 
    Anos depois, quando Lucas se formou e escolheu trabalhar no interior como médico da família, Ana Clara já lecionava numa escola pública e seguia com os pés firmes no chão e os olhos voltados para os sonhos. 
 
    O pé de figueira ainda estava lá. E sob sua sombra, dois jovens que ousaram amar além dos limites impostos — não por ingenuidade, mas por coragem — deixaram raízes que o tempo não apaga. 
 
    E a figueira escutava, como sempre, sem dizer uma palavra. 
 
Conto: Odair José, Poeta Cacerense

quarta-feira, 4 de junho de 2025

O voto das sombras

    Era um tempo em que os ipês floriam antes do previsto, como se a própria natureza estivesse inquieta. Cáceres dormia sob o calor pesado de setembro, quando se espalhou a notícia: o vereador Isidoro Martins sumira. 
 
    Homem miúdo, mas de fala mansa e olhos que pareciam sempre medir as palavras dos outros, Isidoro não era exatamente popular, mas era temido. Sabia demais. Sobre contratos, sobre desvios, sobre gente enterrando osso onde ninguém mais lembrava de procurar. E tinha um diário. Dizia-se que nele estavam guardadas verdades que jamais subiriam à tribuna. 
 
    Naquela semana, a Câmara Municipal se encheu de silêncios. Os colegas—alguns aliados, outros inimigos, todos cúmplices em alguma medida—passaram a andar com passos leves, como se cada estalo no assoalho antigo pudesse acordar fantasmas. O prefeito, tenso, convocou uma coletiva onde não disse nada. A população, por sua vez, fingia desinteresse, como quem já se acostumou a engolir mistérios junto com a poeira da seca. 
 
    Mas havia alguém que queria saber a verdade. Dona Belmira, a bibliotecária aposentada, mulher de poucas palavras e muitos cadernos, começou a investigar por conta própria. Ela conhecia Isidoro desde pequeno, e jurava que ele havia mudado nos últimos meses. Falava de ética como se fosse uma coisa possível. Andava pela cidade anotando nomes, lugares, placas. Como se se preparasse para algo. 
 
    Foi Belmira quem encontrou o diário. Estava escondido atrás da imagem de São Miguel Arcanjo, no altar da capela abandonada à beira do rio Paraguai. Folheou as páginas com dedos trêmulos. Ali, Isidoro escrevera tudo: acordos ilegais, caixas de campanha enterradas em galpões de fazendas, negociações com grileiros, desaparecimentos camuflados por relatórios forjados. 
 
    Mas havia também algo estranho nas últimas páginas. Um trecho repetido diversas vezes, como um mantra: 
 
    “O poder não corrompe. Ele revela. E aquilo que revela às vezes enlouquece quem vê.” 
 
    Nessa mesma noite, Belmira levou o diário ao jornal local. Mas o redator-chefe, velho amigo de infância de alguns dos citados, recusou-se a publicar. Na manhã seguinte, a casa de Belmira foi arrombada. Ela, no entanto, já tinha deixado cópias em três envelopes, entregues a alunos da escola técnica onde dava aulas voluntárias. 
 
    O conteúdo explodiu nas redes, foi parar em blogs, depois em rádios. Mas ninguém foi preso. Os acusados, um a um, apareceram na televisão dizendo que tudo era invenção, "um golpe de oportunistas", "fakenews". Isidoro nunca mais foi visto. Alguns dizem que fugiu para a Bolívia. Outros juram tê-lo visto caminhando pelo bairro Cavalhada ao entardecer, com um olhar que já não era deste mundo. 
 
    Dona Belmira? Passou a ser tratada como uma velha louca. Mas ela continua anotando. Observando. E diz uma coisa para quem ainda a escuta: 
 
    “Nem toda loucura é delírio. Às vezes, é só o que resta para quem viu demais.” 
 
Conto: Odair José, Poeta Cacerense

domingo, 1 de junho de 2025

A primeira carta não enviada

     Hoje, o céu tem o peso do que não digo. E o que não digo é teu nome — sussurrado mil vezes dentro de mim, mas nunca entregue ao vento. 
 
    Há um amor em mim que não cabe, que transborda feito rio na cheia, e ainda assim me obrigo a represá-lo. Não porque falte coragem, mas porque te respeito demais para roubar sequer um segundo da tua paz. 
 
    Tu amas outro. E eu amo tudo em ti, mesmo o que não é meu. Amo tua voz quando fala dele, mesmo que cada sílaba me dilacere. Amo teus olhos buscando por ele, mesmo que passem por mim como quem passa por uma árvore antiga: bonita, talvez, mas imóvel. 
 
    Se soubesses o que carrego — esse vendaval de ternura, esse desespero manso que me acorda nas madrugadas — talvez te afastasses. E eu não suportaria isso. Prefiro essa dor que me acompanha em silêncio a viver num mundo onde não posso ao menos te ver sorrir. 
 
    Às vezes, fecho os olhos e imagino tua mão na minha. É um devaneio breve, como uma estrela cadente: lindo, impossível e destinado a desaparecer. Outras vezes, só fico olhando — tua nuca, teus gestos, o modo como te encostas ao mundo sem saber que és poesia. 
 
    Não espero que me ames. Nem espero que descubras. Só escrevo — e não envio. Porque o amor verdadeiro, às vezes, é só isso: um pássaro que canta dentro da gaiola, sem nunca querer fugir. 
 
Admirador: Odair José, Poeta Cacerense

sábado, 31 de maio de 2025

A moça que tira cor das plantas

    Eu não estava particularmente animado nessa manhã. Fazia frio. E eu não gosto muito de frio. A programação do curso de formação para professores poderia ser mais do mesmo: oficinas sobre metodologias ativas, planejamento, ensino híbrido… poderia, mas não foi. 
 
    A sala era conhecida, a mesma que trabalho História e Filosofia com meus alunos do Primeiro Ano. Lá fora o sol ameaçava espantar o frio e amenizar o meu tédio momentâneo. Quando a moça entrou, carregando uma cesta de plástico, imaginei que teria algo de diferente nesta manhã. O temor das dinâmicas que nos fazem sair da zona de conforto também faz parte dos meus pesadelos. No entanto, meus temores não se confirmaram. Não havia palco. Nem microfone. Ela se apresentou apenas como Ana. Com voz suave chamou a atenção. 
 
    Ana tirou da cesta um punhado de objetos, vidros ou plásticos com sementes de raízes, flores secas. “Essas são minhas tintas”, disse com um sorriso. Começou a falar de sua paixão pela descoberta dos conhecimentos ancestrais das tintas extraídas das plantas. Vinda do interior de Mato Grosso do Sul, que tingia os panos com pau-brasil, jenipapo e outras plantas (inclusive mamona) que não consegui memorizar. Enquanto falava, ela demonstrou a transformação das cores através de pequenos experimentos. 
 
    Eu prendi a respiração. 
 
    Ela explicava como cada cor nascia do atrito entre planta e água, entre fogo e tempo. Mostrou como um tom amarelado surgia do pequi que, como ela disse, uns amam e outros odeiam (não existe meio termo), eu mesmo odeio, como a semente do urucum precisava ser aquecida com óleo para se soltar, como a folha do repolho roxo podia virar azul, rosa ou roxa dependendo do pH. Não era só química — era encantamento. Era ciência com alma. 
 
    Fomos convidados a experimentar. Misturamos, pingamos, vimos as cores ganharem tons. Meus colegas, tão acostumados com quadro branco e marcador permanente, estavam maravilhados, bastante admirados, sorrindo como crianças quando saem para o recreio. 
 
    Ana nos contava que cada cor carregava uma história. A cor da casca do pau-brasil. O violeta do jenipapo vinha da fruta verde, mas escurecia em contato com a pele como um segredo revelado só com o tempo. “O saber da terra não está nos livros, está nas mãos de quem vive nela”, ela disse. Falando de Manoel de Barros ou de Ailton Krenak, ou dos dois. 
 
    Eu a escutava com um nó na garganta. Percebi, ali, que meus alunos sabiam o nome de todos os planetas, mas não reconheciam o cheiro da folha de mamona. Sabiam as cores da Revolução Francesa e da Bandeira dos Estados Unidos, mas não sabiam que o açafrão que coloria o arroz da avó podia virar tinta. Aquela moça, com sua cesta simples e suas mãos manchadas, me ensinava mais sobre educação do que todos os manuais pedagógicos que já li. 
 
    Quando a palestra terminou, ela foi aplaudida de imediato. Antes mesmo de terminar a sua palestra e, depois dela falar tanto nos poetas, eu já estava arquitetando esse texto e autografando um dos meus livros para ela. Conhecimento se transmite dessa forma. 
 
    Guardei comigo mais essa experiência, mais esse aprendizado. Com certeza mais um lembrete: há saberes que não cabem no quadro negro (ou branco). Há cores que só se revelam quando nos abrimos ao invisível. 
 
    Nesse dia, numa pequena sala de aula, descobri que ensinar também é colher raízes. E que toda cor tem sua raiz em algum segredo da terra. 
 
Crônica: Odair José, Poeta Cacerense

sexta-feira, 30 de maio de 2025

O homem do sorriso alegre

    Na vila de Lambari, há muito e muito tempo atrás, ninguém trancava as portas. As crianças corriam livres pelas ruas de barro, os velhos jogavam dominó sob a sombra da mangueira da praça, e os cachorros dormiam tranquilos ao sol. E todos, sem exceção, confiavam no Sr. Álvaro. 
 
    Ele era o padeiro. 
 
    Chegava cedo, antes do canto do galo, e assava os pães mais dourados que já se viram. Tinha sempre um agrado para cada um — um docinho para os pequenos, um pedaço de broa para as senhoras, uma piada para os homens da oficina. E, claro, o seu sorriso. 
 
    Aquele sorriso. 
 
    Branco como farinha, largo como um corte de faca. 
 
    Álvaro ria com os olhos. Sempre. Era impossível não gostar dele. Até mesmo quando a vila começou a mudar. 
 
    Primeiro sumiu o gato da D. Inácia. Depois foi o filho da costureira — disseram que tinha fugido para a cidade grande. Um mês depois, o velho Tito foi encontrado morto no rio, os olhos arregalados, como quem viu algo que não devia ser visto. 
 
    O povo chorava, mas a vida seguia. Afinal, Álvaro ainda estava lá, com seus pães quentinhos, seu cheiro de forno e aquele sorriso. 
 
    Foi apenas Isadora, uma menina de doze anos, quem percebeu. Os olhos atentos, quietos, de quem observa mais do que fala. Ela notou que toda vez que alguém desaparecia, Álvaro assava um novo tipo de pão. Quando a costureira perdeu o filho, surgiu o pão de ervas raras. Quando o velho Tito se afogou, ele trouxe à vila um tal de "pão da alma", macio como nuvem, com gosto que ninguém sabia descrever, mas todos comiam com avidez. 
 
    Certa noite, Isadora decidiu seguir Álvaro. Ele caminhava tranquilo pelas vielas, cantarolando uma canção sem palavras, com um saco às costas que parecia respirar. 
 
    Ela o viu entrar nos fundos da padaria, descer por uma escada estreita, e sumir por trás de uma porta de ferro. Esperou. Horas. 
 
    E então ele voltou — com as mãos limpas, mas o cheiro... ah, o cheiro... não era de fermento. Era algo metálico. Quente. 
 
    Álvaro notou Isadora quando ela tentou fugir. E, mesmo na sombra, ele sorriu. Um sorriso calmo, paternal. Convidativo. 
 
    — Você está com fome, minha querida? — ele perguntou, com a voz doce como mel. 
 
    Na manhã seguinte, Lambari chorava mais uma ausência. A vila se enlutava, mas o pão que o Sr. Álvaro ofereceu naquele dia foi o mais elogiado de todos. Macio. Quente. Com um sabor... inexplicável. 
 
    E, como sempre, ele sorria. 
 
Conto: Odair José, Poeta Cacerense