domingo, 6 de abril de 2025

Quatro voltas para a eternidade

    Era um domingo de sol ameno, daquele tipo que parece ter sido encomendado só pra fazer a gente lembrar dele com carinho décadas depois. Fazia parte do encanto dos anos 90, uma época em que a gente corria mais descalço do que calçado, e onde a pista de terra batida da escola era o nosso estádio olímpico. 
 
    Lembro como se fosse hoje. A cidade toda parecia estar lá. A arquibancada improvisada de madeira estalava sob o peso da torcida — pais, mães, irmãos, tios e curiosos. Uns vendiam picolés de groselha, outros subiam em árvores pra ver melhor. Aquele tipo de aglomeração que só um evento importante trazia pra cidade: a final da corrida de revezamento 4 x 4. 
 
    A gente era só moleque, mas naquele dia... naquele dia, éramos lenda. 
 
    Nos chamavam de tudo quanto é apelido. Eu era o Pernão, por motivos óbvios — tinha as pernas mais compridas da escola e corria como um louco atrás do vento. O Pescoço era alto e magrelo, parecia um galho de coqueiro, mas tinha resistência de maratonista (e também não tinha pescoço). O Matador não tinha piedade: quando pegava o bastão, era como se a pista fosse dele e o tempo fosse inimigo. E o Piti, ah… o menorzinho do grupo, mas com um coração que parecia maior que todos nós juntos. Era rápido, valente e tinha uma explosão que deixava todo mundo de queixo caído. 
 
    A gente treinava escondido, no campinho de trás da escola, usando um cabo de vassoura cortado no meio como bastão. Tínhamos a nossa própria coreografia de passadas e gritos de incentivo. Ninguém dava muito por nós. Mas a gente sabia… sabíamos o que tínhamos. 
 
    Quando chegou a hora, fiquei com a primeira perna da corrida. As outras equipes estavam alinhadas. Os olhos do público, os gritos, o cheiro de barro seco misturado com pipoca… tudo pareceu sumir por um instante. Só ouvi o apito. E corri. 
 
    Corri como se fosse o último domingo da minha vida. 
 
    Senti o vento bater no rosto e o mundo passar em borrões. Entreguei o bastão pro Pescoço com o coração batendo na boca. Ele voou. Não corria — flutuava. Passou um, dois competidores, e já estávamos na frente. 
 
    O Matador gritou antes de pegar o bastão. Era a sua marca registrada, um rugido que gelava os adversários. Correu como quem foge do próprio passado. Firme, decidido, feroz. 
 
    E então veio o Piti. 
 
    O menorzinho da equipe, o mais desacreditado. Quando recebeu o bastão, a vantagem era pequena, e atrás vinha o time dos garotos da outra escola — os "favoritos", com seus tênis novos e uniforme passado a ferro. Mas o Piti não ligava pra isso. Ele correu como se carregasse os sonhos de todos nós nas mãos. 
 
    E talvez carregasse mesmo. 
 
    O último trecho foi uma eternidade. Eu lembro de gritar tanto que fiquei rouco por dois dias. Todo mundo na arquibancada de pé, gente pulando, jogando boné pro alto, gritando o nome do Piti como se fosse de jogador profissional. Ele cruzou a linha de chegada com o peito estufado e um sorriso que não cabia no rosto. 
 
    A vitória foi nossa. 
 
    Não teve pódio, nem medalha de ouro reluzente, mas aquilo… aquilo foi maior. A gente se abraçou, suados, ofegantes, quase sem acreditar. Choramos. Sim, choramos mesmo sendo “durões”. Era alegria demais pra guardar só no peito. 
 
    Hoje, sentado na varanda, com os joelhos estalando e os dias passando mais devagar, ainda escuto aqueles gritos. Ainda vejo o bastão voando de mão em mão, a poeira subindo, o sol iluminando nossos rostos jovens e sonhadores. 
 
    A corrida passou. Mas aquela vitória, meu amigo… aquela ficou. 
 
Conto: Odair José, Poeta Cacerense 
 
Obs. Em memória do nosso amigo Piti (In Memoriam)

sábado, 5 de abril de 2025

A sombra de Caim

    Caim caminhava entre as vinhas ressecadas, os dedos crispados de terra e suor. O céu não respondia, e sua oferta — fruto de seu trabalho, sua devoção — permanecia no altar como pedra rejeitada. Abel, com seu olhar sereno e o cordeiro recém sacrificado, parecia flutuar entre os favores divinos.
 
    Ele não entendia. Por que o Eterno preferia o sangue ao grão? Por que o esforço de suas mãos era menos digno do que o suspiro de um animal? Caim conhecia o relato do Éden — a escolha maldita, a queda, a espada flamejante. Sabia que viver era já uma consequência. Mas ali, naquela terra marcada pela expulsão, era preciso seguir escolhendo. E cada escolha era uma cruz. 
 
    No silêncio do campo, a voz ecoou dentro dele: — "Se procederes bem, não é certo que serás aceito? Mas se não procederes bem, o pecado jaz à porta, e o desejo dele será contra ti, mas cumpre a ti dominá-lo." 
 
    Caim caiu de joelhos. Era essa a angústia: o saber e o não querer. A liberdade que fere, a responsabilidade de ser humano. Sartre viria milênios depois chamá-la de "condenação à liberdade". Mas Caim já conhecia essa prisão sem grades: escolher é carregar o peso de todas as consequências possíveis. 
 
    O campo se estreitou. Abel vinha ao longe, sorrindo, sem culpa. E Caim sentiu a sombra crescer dentro de si. Não era o ódio que o movia, mas a dor de ser visto por um Deus que não o via. O gesto que seguiu foi menos fúria que desespero — um clamor sem palavras, um grito contra o silêncio divino. 
 
    E quando o sangue tocou a terra, Caim finalmente ouviu. Mas era tarde. 
 
    O solo, agora maldito, não gritaria apenas por justiça, mas por todas as escolhas que virão depois — e por todos os homens que, como Caim, teriam que viver com elas. 
 
Conto: Odair José, Poeta Cacerense

domingo, 19 de janeiro de 2025

O eco do silêncio

    Marta vivia em um pequeno apartamento no centro da cidade, cercada pelo barulho incessante da vida cotidiana. O marido, Gustavo, era um homem correto, mas distante, preso à rotina do trabalho e às expectativas de um casamento que há muito perdera o brilho. Os filhos, dois adolescentes, viviam imersos em seus próprios mundos digitais, oferecendo a ela apenas o silêncio como resposta à maioria das perguntas. 

    Por anos, Marta desempenhou seu papel com perfeição: esposa dedicada, mãe atenta, profissional eficiente. Mas, à noite, quando o apartamento se acalmava, o vazio dentro dela ganhava voz. Era um chamado insistente, quase imperceptível, mas que, ao longo dos anos, tornou-se impossível de ignorar. 

    Uma manhã, sem aviso, ela se levantou mais cedo do que o habitual. Preparou o café, escreveu um bilhete curto — "Preciso de um tempo. Estou bem. Amo vocês." — e saiu pela porta. Não levou muito: uma mochila com roupas, um caderno e um livro. 

    Marta seguiu para uma cabana isolada na serra, um lugar que descobrira anos antes durante uma viagem de trabalho. Lá, cercada por serras e árvores que sussurravam ao vento, ela encontrou o que buscava: silêncio. 

    Os primeiros dias foram difíceis. Marta se perguntava se havia cometido um erro. Sentia falta do caos familiar, das vozes dos filhos, do toque do marido. Mas, aos poucos, aprendeu a ouvir o mundo ao seu redor — o som das folhas ao vento, o canto dos pássaros, o farfalhar dos pequenos animais na floresta. 

    Com o passar dos meses, Marta começou a se redescobrir. Pintava, escrevia, caminhava. Percebeu que havia se perdido ao longo dos anos, tentando ser tudo para todos, menos para si mesma. 

    Seis meses depois, Marta voltou para casa. Não era a mesma mulher que havia partido. Seus olhos brilhavam com uma nova força, e sua presença exalava calma. Gustavo a recebeu com um misto de alívio e hesitação, e os filhos a abraçaram sem entender totalmente o motivo da sua ausência. 

    Marta não tentou explicar tudo. Apenas prometeu a si mesma que, dali em diante, nunca mais se deixaria desaparecer. E, em pequenas doses, ela manteve aquele eco de silêncio dentro de si, como um lembrete de quem realmente era. 

Conto: Odair José, Poeta Cacerense

quarta-feira, 25 de dezembro de 2024

O Último Culto

    José Augusto era um homem simples, obreiro dedicado da pequena igreja no bairro onde morava. Sua vida sempre fora marcada pela devoção a Deus e pela busca incessante de uma conduta irrepreensível. Ele acreditava que, independentemente das tribulações, manter-se firme na fé era um chamado divino, uma missão que ele deveria cumprir até o último instante. 

    Naquela semana, entretanto, a pressão parecia insuportável. Problemas no trabalho, discussões familiares e um inesperado diagnóstico de saúde trouxeram uma onda de angústia que ameaçava sua paz interior. Na quarta-feira, enquanto revisava as cadeiras do templo antes do culto, sentiu uma pontada no peito que o fez parar por um instante. Respirou fundo, fez uma oração silenciosa e seguiu com o trabalho. “O Senhor é a minha força”, repetia a si mesmo. 

    O último culto da semana era sempre especial para José Augusto. O culto de domingo à noite tinha um ar solene, como se aquele momento fosse o ponto alto de sua semana. Mesmo cansado e aflito, ele não abriu mão de preparar o ambiente com zelo. A cada banco ajustado e cada hino ensaiado, sentia a presença de Deus renovando suas forças. 

    Naquele domingo, o pregador trouxe uma mensagem impactante sobre o fim dos tempos. As palavras ecoaram com uma força especial no coração de José Augusto: “Vigiai, pois não sabeis o dia nem a hora em que o Filho do Homem virá”. Ele sentiu como se aquela pregação fosse direcionada a ele. Durante o apelo final, enquanto o pregador clamava para que os presentes se entregassem de corpo e alma a Deus, José Augusto foi tomado por uma profunda paz. Fechou os olhos e deixou uma lágrima escorrer pelo rosto. “Senhor, minha vida está em tuas mãos”, sussurrou. 

    Ao chegar em casa, depois de um longo dia de dedicação, José Augusto sentiu o corpo pesar. Fez sua última oração ao lado da cama, agradecendo a Deus por ter sustentado sua fé, apesar das dificuldades. "Pai, obrigado por me manter de pé. Que eu esteja preparado para te encontrar, seja quando for o momento." Deitou-se e sentiu o coração tranquilo, como há muito não sentia. 

    Na manhã seguinte, quando a família o chamou para o café, perceberam que ele não respondia. José Augusto havia partido durante o sono, serenamente, como quem foi recolhido pelo próprio Deus. A expressão em seu rosto não deixava dúvidas: ele encontrara a paz eterna. 

    A igreja lamentou sua perda, mas o exemplo de fé e perseverança de José Augusto ficou gravado no coração de cada irmão. O culto seguinte foi marcado por testemunhos emocionantes sobre a vida do obreiro, enquanto todos cantavam o hino favorito dele: “Mais perto quero estar, meu Deus de ti”. Sua morte, embora singela, foi um lembrete poderoso de que viver para Deus é preparar-se para encontrá-Lo a qualquer instante. 

    José Augusto viveu e partiu como sempre desejou: firme na presença do Senhor. 

Conto: Odair José, Poeta Cacerense

quarta-feira, 11 de dezembro de 2024

O amor nos tempos das gangues

    Na pequena vila de Lambari, cercada por serras e riachos e isolada do ritmo acelerado do mundo moderno, nos idos anos 80, vivia Rafael, um jovem sonhador de 19 anos. Ele passava os dias ajudando seu pai na lavoura e lendo livros que conseguia na escola local. Mas, em seu coração, havia um desejo incontrolável de algo mais. As ruas de terra e os campos sem fim pareciam pequenos demais para conter sua ambição. Rafael queria a cidade grande, queria Cáceres, um lugar que ouvia descrever como cheio de luzes, oportunidades e mistérios. 

    Um dia, com uma mochila surrada nas costas e uma nota de despedida deixada sobre a mesa da cozinha, Rafael partiu antes do amanhecer. A viagem foi longa e cansativa, na carroceria de um caminhão velho, mas quando finalmente chegou a Cáceres, a vastidão da cidade o deixou sem fôlego. Casarões antigos imensos, carros passando a toda velocidade e muitas pessoas pelas ruas que pareciam não parar nunca. 

    Os primeiros dias foram de encanto e desorientação. Rafael encontrou trabalho como ajudante em uma mercearia e alugou um quartinho em uma pensão simples nas proximidades da velha rodoviária. Enquanto caminhava pelas ruas após o trabalho, viu Luara pela primeira vez. Ela estava sentada na escadaria de um antigo casarão, rindo com algumas amigas. Lara era linda, com olhos que pareciam conter todo o brilho da cidade. Rafael se apaixonou imediatamente, mas logo descobriu que Luara estava comprometida com Vitão, um dos líderes de uma perigosa gangue local. 

    Vitão era temido em Cáceres. Dominava, com mãos de ferro, as gangues da cidade e causava o terror nas pessoas. Suas ações controlavam vários bairros da cidade, e ele tinha uma reputação de ser cruel com quem ousasse cruzar seu caminho. Apesar disso, Rafael não conseguia evitar se aproximar de Luara. Aos poucos, eles começaram a conversar sempre que se encontravam casualmente, e a bela jovem se mostrou gentil e curiosa sobre as histórias da vida de Rafael na vila. Era evidente que ela também sentia algo especial. 

    No entanto, essa conexão não passou despercebida. Uma noite, ao sair do trabalho, Rafael foi confrontado por dois homens da gangue de Vitão. Eles o espancaram como aviso para que ficasse longe de Luara. Ensanguentado e dolorido, Rafael percebeu que não seria fácil viver seu sonho na cidade grande. Apesar da surra e das ameaças de morte caso continuasse a insistir com a jovem, Rafael sabia que devia lutar. 

    Então, por isso ele não desistiu. O jovem decidiu que protegeria Luara e, ao mesmo tempo, buscaria uma vida digna. Começou a trabalhar mais horas, economizar cada centavo e buscar aliados. Conheceu pessoas que também queriam uma cidade menos dominada pela violência e pela opressão das gangues. Juntos, formaram uma pequena comunidade que ajudava uns aos outros com trabalhos honestos e apoio emocional. 

    Enquanto isso, Luara começava a se questionar sobre sua própria vida. Estar com Vitão lhe dava segurança material, mas também a aprisionava em um mundo de medo e domínio. Ela viu em Rafael não apenas um jovem corajoso, mas uma possibilidade de recomeço. 

    A tensão atingiu seu ápice quando Vitão descobriu que Luara planejava deixá-lo. Em uma confrontação dramática, Rafael enfrentou o líder das gangues. Não foi uma luta de igual para igual – Vitão era mais forte e mais experiente em combates –, mas Rafael lutou com a força de quem não tinha nada a perder. A briga atraiu uma multidão, e a polícia, frequentemente ausente, foi forçada a intervir. Vitão foi preso por diversos crimes, e sua gangue perdeu o poder. 

    Com o chefe das gangues fora de cena, Rafael e Luara puderam finalmente construir algo juntos. Ele continuou trabalhando com sua comunidade, ajudando jovens a encontrarem caminhos longe do crime, e Luara se juntou a ele, usando sua experiência para ajudar mulheres a saírem de relações abusivas. 

    Cáceres continuou sendo uma cidade cheia de desafios, mas para Rafael e Luara, tornou-se também um lugar de esperança e redenção. Rafael descobriu que a verdadeira grandeza não estava nas luzes da cidade, mas na capacidade de transformar vidas, incluindo a sua própria. 

Conto: Odair José, Poeta Cacerense

sábado, 16 de novembro de 2024

O encontro na Praça Barão

    Na pacata cidade de Cáceres, um ar de mistério sempre envolveu a Praça Barão do Rio Branco. Local de passeios diurnos e de encontros noturnos sob a luz dos antigos lampiões, a praça abrigava o Marco do Jauru, uma pedra secular fincada ali desde o Tratado de Madrid, no século XVIII, marcando os limites entre as possessões portuguesas e espanholas na América do Sul. Mas poucos sabiam que, para além de sua importância histórica, o Marco também guardava segredos sombrios. 

    Naquela noite, a praça estava coberta por uma neblina que parecia ter surgido do nada, abafando o som das cigarras e o farfalhar das folhas das árvores. Apenas a silhueta de um homem se destacava no centro da praça, parado, imóvel, como se fosse parte do próprio Marco do Jauru. As pessoas que o viam descreviam-no como alto, com pele pálida e um olhar que parecia penetrar a alma. 

    Mathias, um jovem curioso e morador de Cáceres, sempre ouvira histórias de sua avó sobre o “homem misterioso da praça”, uma figura que, segundo ela, aparecia a cada poucas décadas desde o século XIX. Diziam que ele fora visto pela primeira vez ao lado do Marco do Jauru, pouco depois da chegada do vapor Etrúria, que subira o Rio Paraguai desde o Atlântico, trazendo exploradores, aventureiros e... algo mais. 

    Intrigado, o jovem decidiu investigar. Ele passou noites na praça, observando e esperando, até que finalmente o homem apareceu. Mathias hesitou, mas, tomado pela coragem, aproximou-se dele. Ao chegar perto, sentiu um calafrio inexplicável e percebeu que o homem usava roupas finas, mas de um estilo antigo, como de outra época. 

    — Boa noite — disse Mathias, tentando esconder o nervosismo. 

    O homem o encarou, com olhos profundos e escuros como a própria noite, e respondeu com um sotaque que denunciava suas origens lusitanas: 

    — Boa noite, jovem. Cáceres ainda preserva seu encanto, não? A história… é viva nesta praça. 

    Mathias então perguntou sobre o Marco do Jauru, mencionando as histórias que ouvira de sua avó. O homem sorriu, mas era um sorriso frio, que parecia esconder algo sombrio. 

    — Ah, o Marco... um símbolo de fronteiras, de limites. Mas certas fronteiras são feitas para serem ultrapassadas, mesmo que não sejam visíveis aos olhos humanos — ele respondeu, lançando um olhar breve ao Marco, como se ele próprio tivesse atravessado um limite proibido. 

    O ar parecia se tornar mais denso. O jovem percebeu que algo estava errado. Perguntou, hesitante, como ele havia chegado a Cáceres, ao que o homem respondeu: 

    — Cheguei numa embarcação há muito tempo. Um vapor, o Etrúria... tempos sombrios, de busca e de exílio. Aqui, encontrei uma espécie de... lar. 

    Nesse momento, Mathias viu, no reflexo da fonte ao lado do Marco, que o homem não tinha sombra. Lembrou-se das lendas de sua avó, que falavam de um ser imortal, um vampiro que cruzara o Atlântico em busca de um refúgio, fugindo da perseguição e das cruzes de seu país natal, Portugal. 

    Assustado, o rapaz recuou. O homem misterioso, percebendo o medo em seus olhos, apenas sorriu e sussurrou: 

    — Cáceres é uma cidade antiga, jovem. E seus segredos... estão bem guardados. Assim como eu estou. 

    Quando Mathias piscou, o homem já não estava mais lá. Ele olhou em volta, mas a praça estava deserta, e o silêncio era absoluto. Desde então, o jovem cacerense nunca mais o viu, mas sempre que passava pela praça, sentia que o olhar do homem misterioso ainda o seguia, como se guardasse a cidade e seus segredos sob a sombra do Marco do Jauru. 

    E, em algumas noites de neblina, quem passa pela praça ainda jura ver uma figura pálida, com olhos profundos, observando, como um guardião sombrio que jamais abandonou Cáceres. 

Conto: Odair José, Poeta Cacerense

quarta-feira, 14 de agosto de 2024

O Vampiro no Marco do Jauru

    Em Cáceres, no coração do Mato Grosso, a Praça Barão guarda um segredo sombrio e antigo. No centro da praça, o Marco do Jauru, um imponente obelisco, é conhecido por sua importância histórica, mas poucos sabem que ele esconde um mistério ainda mais profundo. 
 
    No final do século XIX, o vapor Etrúria, uma majestosa embarcação, subia lentamente o rio Paraguai, carregando uma carga preciosa de mercadorias e passageiros ilustres. Entre esses passageiros, um homem enigmático, sempre envolto em um manto escuro, atraía olhares curiosos. Seu nome era Vladislav, e de onde ele vinha quase ninguém sabia ao certo. 
 
    As noites durante a viagem eram especialmente tensas. Histórias de desaparecimentos misteriosos começaram a circular entre os tripulantes. Algumas pessoas alegavam ouvir sussurros no escuro, enquanto outros diziam ver sombras movendo-se nas profundezas da floresta ribeirinha. 
 
    Quando o Etrúria finalmente chegou a Cáceres, Vladislav desembarcou e imediatamente se isolou da sociedade. Ele se instalou em uma antiga fazenda nos arredores da cidade, onde raramente era visto à luz do dia. Sua presença em Cáceres trouxe com ela uma série de eventos inexplicáveis: animais encontrados mortos, com o sangue completamente drenado, e moradores que adoeciam misteriosamente, enfraquecendo até a morte. 
 
    O tempo passou, e Vladislav, com sua pele pálida e olhos profundos, passou a ser conhecido pelos habitantes como o "Senhor da Noite". Em noites de lua cheia, ele era visto caminhando pela cidade, sempre em direção ao Marco do Jauru, onde parecia meditar sob as estrelas. 
 
    Conta a lenda que o Marco do Jauru, além de seu papel como divisor de territórios, possui uma energia antiga e poderosa, que Vladislav havia descoberto. Dizem que ele selou parte de sua essência vampírica no monumento, permitindo-lhe sobreviver por séculos sem envelhecer. Com o passar do tempo, ele aprendeu a se ocultar durante o dia no próprio obelisco, onde repousa até hoje, protegido por forças que poucos compreendem. 
 
    Os moradores mais antigos de Cáceres evitam a praça à noite. Alguns ainda contam histórias de como o ar parece mais frio ao redor do monumento quando o sol se põe, e de como o som do vento sussurrando através das árvores soa como sussurros de um idioma antigo e esquecido. 
 
    De tempos em tempos, desaparecimentos inexplicáveis ainda ocorrem na região, sempre associados a noites sem lua, quando as sombras parecem se mover por vontade própria. Aqueles que conhecem a lenda acreditam que o vampiro Vladislav ainda está em Cáceres, vigiando a cidade desde seu refúgio no Marco do Jauru, esperando o momento certo para despertar completamente e reclamar seu domínio sobre a região. 
 
Conto: Odair José, Poeta Cacerense

sexta-feira, 26 de julho de 2024

No cemitério

    Na pequena cidade de Lambari, nos anos 80, três garotos inseparáveis, Lira, Zoião e Dison, eram conhecidos por suas aventuras ousadas. Em uma noite de lua cheia, decidiram testar sua coragem explorando o antigo cemitério local, um lugar envolto em lendas assustadoras. 
 
    "Vamos ver quem tem coragem de ir até o túmulo do coronel Bento!", desafiou Lira, o mais destemido do trio. Armados com lanternas e um senso de bravura juvenil, os três amigos adentraram o cemitério, seus corações batendo acelerados. 
 
    Enquanto caminhavam entre os túmulos, um silêncio sepulcral envolvia o ambiente, interrompido apenas pelo farfalhar das folhas ao vento. Chegaram ao túmulo do coronel Bento, uma sepultura imponente e coberta de musgo. Lira, determinado a provar sua coragem, se aproximou e iluminou a lápide com sua lanterna. 
 
    De repente, um som de terra se movendo fez com que os três se virassem abruptamente. De um túmulo ao lado, emergia um esqueleto, seus ossos brilhando sob a luz da lua. Os olhos vazios pareciam fixar-se neles, e um silêncio aterrador tomou conta do lugar. 
 
    "CORRE!" gritou Zoião, quebrando o encanto do medo. Os três garotos dispararam em direção à saída do cemitério, suas lanternas balançando e iluminando o caminho tortuoso. O som de seus passos apressados ecoava entre os túmulos enquanto o esqueleto permanecia em pé, como uma sentinela macabra. 
 
    Ao alcançarem a segurança da rua principal de Lambari, os meninos pararam para recuperar o fôlego, olhares arregalados e respirações ofegantes. "Vocês viram aquilo?" perguntou Dison, ainda tremendo. "Era um esqueleto de verdade!" 
 
    "Eu falei que o cemitério era assombrado!" exclamou Lira, tentando esconder o medo atrás de uma fachada de bravura. 
 
    Os três amigos juraram nunca mais voltar ao cemitério à noite, mas a história do encontro com o esqueleto se tornou uma lenda em Lambari, contada e recontada pelos moradores. Para os três garotos, aquela noite foi uma mistura de medo e excitação que jamais esqueceriam, uma lembrança vívida de uma aventura nos tempos de infância. 
 
Conto: Odair José, Poeta Cacerense

domingo, 21 de julho de 2024

A serpente e o cavalo

    Estava em um lugar nebuloso. Cheio de árvores esparsas em meio um vasto cerrado. Olhei para todos os lados e não sabia qual direção tomar. Na verdade, nem sabia como tinha ido parar naquele lugar. Um medo terrível tomou conta de mim. O sol escaldante queimava a minha cabeça e ofuscava a minha visão. Almejava a minha salvação que não aparecia nunca. 

    Estava absorto em meus temores quando a avistei. Seus olhos eram tenebrosos e foi à primeira coisa que vi. Ela, aos poucos foi saindo da toca. Era enorme e assustadora. De cor cinzenta. Seu contorno era aterrorizante e um temor apoderou-se de mim. Eu precisava correr. Mas não teria condição de fugir dela correndo a pé. Seu olhar ameaçador fixou-se sobre mim e me fez entender que a qualquer momento ela daria o bote certeiro e fulminante que acabaria com minha vida. Vida que seria dilacerada em um momento. 

    Foi quando avistei, logo ali na frente, aquele belo cavalo. Negro da cor da noite mais escura ele pastava tranquilamente alheio à presença da víbora. Cavalguei-o e nem precisei esporeá-lo para que cavalgasse como um raio pela planície. Foi uma perseguição alucinante pela esplanada e uma fuga espetacular. Olhei para trás e vi a enorme serpente ficando a distância. Meu coração acelerado era o retrato do medo pelo qual passei. O cavalo parou ao entrar em um enorme jardim cheio de flores. Flores lindas e perfumadas. Eram muitas mesmo que até sumiam das vistas. 

Nesse instante eu acordei. O que significa não sei, mas esse foi o sonho que tive essa noite. 

Prosa: Odair José, Poeta Cacerense

domingo, 30 de junho de 2024

Cidade sem cabaré

    Falo de uma cidade cheia de farmácias. Um lugar que representa uma sociedade doente, cheia de ratos e morcegos. Uma cidade onde você não encontra nenhum cabaré. Sinal de que não há promiscuidade? Pelo contrário. Pederastas, lascivos e outros devassos é o que mais se pode encontrar pelas penumbras dessa cidade. 

    Bares. Inúmeros. Pelo menos dois em cada quarteirão. Uma mistura de poluição sonora com poluição visual que ofuscam a visão e fedem nas narinas de gente séria que nela tentam sobreviver. Bares que escondem o pecado original em suas bases. No fundo são antros de prostituição e distribuição de entorpecentes. 

    Ratos e morcegos são literais. Existem milhares deles pelas valas e bueiros. Mas, também, são simbólicos. São pessoas que sujam essa cidade com suas imundícias e perversões e a transformam neste limbo indescritível. Morcegos que sugam nossas energias com suas mandíbulas doentias. Farmácias imponentes em cada esquina mostram o quanto à cidade é doente. 

    Sodoma e Gomorra parecem o paraíso diante das atrocidades cometidas nessa cidade. Fogo e enxofre são insuficientes para extinguir o mal enraizado nas ruas e vielas dessa cidade. Uma bomba atômica varreria do mapa essa que é um antro de perdição, mas não conseguiria purificar tanto mal. 

    Pode-se ouvir, dependendo do poder de audição, o choro contido em almas que perambulam pelas praças e avenidas dessa cidade. Um choro contido e sufocado pela agressão verbal e espiritual impostas sobre essas almas. Não existem pessoas para gritar contra essa opressão desenfreada que toma conta da cidade. 

    Onde estão as casas de luz vermelha que mostram de forma clara onde se podem esquecer os dissabores de vidas medíocres encurraladas entre quatro paredes? Casas que oferecem um ponto de fuga. Um refúgio para almas incontidas. Como buscar remédio para um mal que não se encontra no corpo e sim no íntimo de cada um. 

    Algumas mulheres insatisfeitas, mal amadas (ou incompreendidas) que se arrastam e se dobram ao primeiro galanteio de um ser qualquer. Que são conduzidas à promiscuidade e se entregam aos prazeres a ponto de esquecer até de seus filhos. Sanguessugas que espreitam suas vítimas nas mesas de bares e botecos maquinando qual a melhor forma de dar o bote certo. Querem sanar as frustrações que passam nos lares enquanto esperam seus maridos chegarem do trabalho. 

    Nessa ânsia de curar essa dor incurável acabam contribuindo para o crescimento dos motéis e dormitórios secretos. E como um abismo puxa outro abismo contribui também para o crescimento do consumo de bebidas e entorpecentes que, consequentemente, corrobora com o tráfico e crimes. 

    A cidade não dorme. O silêncio não existe por aqui. 

    Ouve-se o grito agonizante de almas que rastejam nessa lama de indecência e buscam, de forma desesperada, um braço estendido para salvá-las. Demônios sobrevoam os espaços e lançam seus grilhões de invejas e ciúmes. Mortes bárbaras se tornam corriqueiras e banais diante de uma sociedade que se acostumou com a miséria de vidas sem sentido. 

Crônica: Odair José, Poeta Cacerense