domingo, 21 de setembro de 2025

O Pássaro do Coração Silencioso

    Havia um homem que, desde jovem, trazia no peito uma pequena gaiola invisível. Dentro dela vivia um pássaro pálido, de asas frágeis como véus de vidro. O homem o alimentava todos os dias, não com sementes ou água, mas com pensamentos nunca ditos, com desejos que jamais ousaram atravessar os lábios. 
 
    O pássaro crescia daquilo que não podia nascer — sorrisos engolidos, olhares desviados, cartas queimadas antes de escritas. E, embora suas asas jamais se movessem, ele cantava. Seu canto não era doce, mas profundo, como um eco vindo de uma caverna subterrânea. Era o som de um amor que ninguém jamais conheceria. 
 
    Com o passar dos anos, o homem percebeu que o pássaro nunca voaria. Preso àquela prisão secreta, sua existência se resumia ao lamento eterno. Mas o homem também percebeu outra coisa: o canto do pássaro atravessava a escuridão do tempo, como se fosse indestrutível. 
 
    Assim, ele compreendeu a maldição: amar em segredo era nutrir um pássaro que jamais conheceria o céu, mas cujo canto sobreviveria a todas as coisas — ao silêncio, à morte, ao esquecimento. 
 
    E o homem partiu deste mundo com o peito vazio de asas, mas repleto de ecos. 
 
    E dizem que, se à noite você encostar o ouvido no silêncio mais profundo, ainda poderá ouvir esse pássaro cantar. 
 
Fábula: Odair José, Poeta Cacerense

sábado, 13 de setembro de 2025

É ruim ficar sozinho?

    Estar tão sozinho é como caminhar por um deserto sem horizonte, onde o vento não traz notícias e cada passo é apenas o eco de si mesmo. No início, há medo — medo do vazio, da ausência, do silêncio que se alonga como um corredor infinito. Mas, à medida que a solidão se adensa, algo muda: o vazio deixa de ser ameaça e começa a ser espelho. Descobre-se que o silêncio não é oco, mas cheio — cheio de perguntas, de memórias, de vozes antigas que sempre estiveram abafadas pelo ruído do mundo. 
 
    É então que a solidão se torna revelação. A ausência dos outros desvela a presença de si. No escuro, quando nada resta além da própria respiração, percebe-se que o coração pulsa como um farol. Descobre-se que a alma não é feita de fragmentos alheios, mas de uma inteireza que só se mostra na solitude. Encontrar-se a si mesmo não é uma conquista imediata, mas um processo doloroso, como despir-se diante de um espelho que não perdoa. 
 
    E nessa nudez profunda, percebe-se que não há companhia maior do que a própria essência. Que as cicatrizes contam histórias que ninguém ouviu, mas que sustentam o corpo como raízes invisíveis. Que a dor, antes insuportável, agora é lembrança de sobrevivência. Que a solidão, tão temida, é na verdade um útero: dentro dela, renasce-se. 
 
    Ao estar só até o limite do silêncio, a alma encontra sua morada secreta. E compreende, enfim, que não é preciso ninguém para ser inteiro, pois a inteireza já estava ali, escondida no fundo, esperando ser descoberta. 
 
Pensamentos: Odair José, Poeta Cacerense

quinta-feira, 11 de setembro de 2025

O Misterioso Homem na Praça Barão - (Helena)

    Naquela noite, o Cine Xin, orgulho cultural de Cáceres, reluzia como um farol no coração da cidade. Cartazes coloridos anunciavam a grande estreia, e uma multidão ansiosa se reunia na porta, disputando os melhores lugares. Entre os que haviam vindo de longe estava um pequeno grupo de jovens de Lambari D’Oeste, encantados com a promessa de glamour e novidade. 
 
    Entre eles, destacava-se, ainda que quisesse se esconder, uma jovem ruiva de olhos verdes, chamada Helena. Tímida, guardava as palavras sempre mais no peito do que na boca. Os colegas riam alto, empurravam-se, trocavam gracejos com as moças cacerenses, mas Helena caminhava alguns passos atrás, observando tudo como quem teme pertencer ao cenário. 
 
    Foi quando, ao cruzarem a Praça Barão, ela o viu. 
 
    Sentado num banco de ferro, quase dissolvido na sombra das árvores antigas, estava o Misterioso Homem da Praça Barão. Sua figura, alta e magra, parecia envolta em um casaco escuro, mesmo no calor da noite. Não havia quem ousasse encará-lo diretamente, mas Helena, por acaso ou destino, encontrou seus olhos. Eram fundos, de uma cor indecifrável, e traziam um silêncio que parecia atravessar séculos. 
 
    Por um instante, Helena esqueceu os colegas, o filme, a cidade. Sentiu-se olhada como nunca antes. Não com desejo ou curiosidade vulgar, mas como se aquele homem a enxergasse inteira — seus medos, suas hesitações, o rubor que lhe tomava o rosto. 
 
    — Anda, Helena! — gritou um dos rapazes, puxando-a pelo braço. — Vamos perder os trailers! 
 
    Ela desviou o olhar, mas a inquietação ficou. Durante a sessão, mal conseguiu prestar atenção à tela. A cada explosão de aplauso, lembrava-se do silêncio daquele olhar. A cada cena vibrante, voltava à sombra do banco da praça. 
 
    Ao fim do filme, já de madrugada, quando o grupo se dirigia de volta à hospedaria, Helena, num impulso, parou novamente diante da Praça Barão. Os colegas seguiram adiante, distraídos. O banco, agora vazio, parecia carregar ainda a marca de uma presença. 
 
    E então, no reflexo de uma das janelas antigas do casarão da esquina, ela jurou ver a silhueta do Misterioso Homem. Não no banco, não na rua, mas dentro do vidro, como se fosse habitante de outro tempo. 
 
    Helena estremeceu. Perguntou a si mesma se era fruto da imaginação, se a noite não lhe pregava uma peça. Mas no íntimo, sabia: poucas pessoas conseguiam ver o Misterioso Homem. Menos ainda eram por ele reconhecidas. 
 
    Na viagem de volta para Lambari, seus colegas falavam do filme, das moças cacerenses, do movimento da cidade. Helena permanecia calada, com os olhos fixos na estrada escura. Em seu coração tímido, no entanto, crescia uma certeza: ela havia sido escolhida. 
 
    E, em noites futuras, quando retornasse a Cáceres, sabia que buscaria, na Praça Barão, aquele olhar que parecia sussurrar segredos de outra vida. 
 
Conto: Odair José, Poeta Cacerense

sexta-feira, 5 de setembro de 2025

Desejos ocultos

    Os desejos ocultos do coração são como sementes lançadas em silêncio no solo mais profundo da alma. Eles não pedem permissão para nascer, apenas crescem nas frestas da noite, alimentados por sonhos que não ousamos confessar. 
 
    São chamas tímidas que ardem atrás dos olhos, sussurros que só o peito escuta, caminhos que se desenham no escuro. Alguns deles são tão frágeis que tememos que o mundo os quebre; outros, tão intensos, que o mundo não suportaria vê-los expostos. 
 
    O coração esconde porque sabe que o desejo, quando revelado, corre o risco de se perder no julgamento, na pressa, no esquecimento. Mas, ainda assim, pulsa — e esse pulsar é a prova de que o invisível também guia nossas escolhas. 
 
    No silêncio dos desejos ocultos, mora a mais pura verdade: aquilo que somos quando ninguém nos observa. 
 
Pensamentos: Odair José, Poeta Cacerense